São Paulo, 20/11/2025 – Quem envelhece hoje no Brasil? O enfermeiro Roudom Ferreira Moura, ao analisar a saúde das pessoas idosas na cidade de São Paulo, concluiu que, apesar de 55,5% da população brasileira ser negra, o envelhecimento é branco no País. As causas das discrepâncias no envelhecer são inúmeras, mas perpassam por questões de território, gênero e raça.
Para o analista socioeconômico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Jefferson Mariano, embora o Brasil passe por uma rápida transição demográfica, o envelhecimento ocorre de forma desigual entre os grupos raciais. “Apesar da população negra ser expressiva no País, a partir da faixa etária dos 65 a 69 anos, a população branca já passa a ser a maioria e, à medida que você vai avançando nas faixas etárias, você tem um distanciamento cada vez maior”, explica.
A violência, que atinge mais expressivamente a população preta e parda no Brasil, vitimou 35,2 mil pessoas em 2023, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A taxa de homicídio de pessoas negras é, inclusive, 172,6% superior à de pessoas não negras, aponta o Atlas.
Para o mestrando em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Afrocebrap), Huri Paz, as pessoas negras enfrentam uma barreira expressiva para chegar à fase idosa: a alta mortalidade entre jovens no País.
“A população negra, principalmente na juventude, costuma morrer mais cedo do que a população branca, isso faz com que o número de pessoas que envelhecem dentro deste recorte seja menor”, expõe.
O pesquisador é coautor do estudo “Envelhecimento, Cuidado e Raça no Brasil”, que elabora o conceito do “acúmulo de desigualdades” para explicar que pessoas negras têm oportunidades e suporte limitado desde a primeira infância, o que culmina em uma velhice marcada pelo desgaste físico e psicológico. “Há uma precarização muito grande na trajetória de vida da população negra envelhecida, que não necessariamente chegam à fase idosa com dignidade”, explica.
O índice de envelhecimento – calculado pelo IBGE por meio da razão entre o número de pessoas idosas e o de crianças e jovens – é menos expressivo entre a população parda (60,6), considerando todos os recortes raciais. Para os brancos, o índice chega a 98.
De acordo com Paz, as pessoas negras possuem um índice de envelhecimento ativo – ferramenta que avalia a qualidade de vida na população idosa – menor do que o dos brancos, com menos acesso à mobilidade, saúde, inclusão digital, oportunidades de trabalho, segurança financeira e lazer. “No momento em que deveriam ser cuidadas, as pessoas idosas negras, sobretudo as mulheres, ainda cuidam dos seus netos e filhos, desigualdade ampliada também pelo território que ocupam.”
“A gente é desmerecida”
Servidora pública da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ronilda Azevedo, de 69 anos, mora sozinha em Saquarema (RJ), diz ser grata por ter atingido a longevidade com relativa saúde e bom humor, mas é ciente das barreiras que enfrentou ao longo da vida.
“Eu corri e batalhei a vida toda para agora ouvir dos outros que sou dramática, porque falo das dores que sinto em meu corpo. Sofri com burnout e convivi um período com a depressão pós-pandemia, mas não fui levada a sério, porque a mulher negra tem casca forte, é batalhadora, não pode sofrer, nem ser vulnerável. A gente é desmerecida.”
Mãe solteira de três filhos pretos que tiveram acesso aos estudos e à universidade, Ronilda, que não conseguiu concluir a graduação em psicologia para prover sustento, sofreu violências incontáveis – sexuais na infância e adolescência, identitárias na vida adulta e idadistas na fase idosa. “Me sinto descartável no meu trabalho. As pessoas contam o dia para eu me aposentar. Já sofri na rua inúmeras vezes por não ser branca, nem ser preta, mas fui resiliente por mim e pelos meus filhos e cheguei até aqui.”
Ela conta que uma das principais conquistas foi ver os filhos se formarem e constituírem família, sem serem assassinados na rua. “A gente que é negra e tem filho preto não consegue ter a paz que o branco tem, porque saiu na rua é bandido. Meus filhos tiveram acesso aos estudos por meio das cotas, das políticas públicas, mas a desigualdade é muito forte”, relata.
Hoje, a servidora convive com fortes dores no joelho, mas tenta manter uma vida ativa, caminhando na areia da praia, sem cobrar dos filhos o mesmo cuidado que proveu por anos. “Eu criei meus filhos para o mundo, mas mantenho um aplicativo com a minha localização ativa e deixo minha vizinha alerta caso aconteça algum imprevisto. Também me considero uma psicóloga autodidata, estou sempre estudando”, diz.
"Isso não se apaga, é eterno"
Diferentes velhices são vividas e experienciadas pela população negra. Roberto Francisco Amaro, 70, o mestre capoeirista “Canela”, trabalhou com metalurgia e, desde 1978, pratica a arte da capoeira, o que reforçou o olhar para a própria identidade.
Casado e pai de três filhos, mantém uma vida ativa, acordando todos os dias às 4h30 da manhã para praticar exercícios e Muay Thai. “Eu chego na velhice com a cabeça erguida, ser negro pra mim significa muita coisa na minha vida, só dentro da capoeira falamos sobre Zumbi do Palmares, sobre a escravidão e a resistência. Isso não se apaga, é eterno.”
"Brasil não é lugar para um envelhecimento digno"
“A consciência do envelhecimento surgiu quando percebi a naturalização da violência na velhice”, diz Lenny Blue de Oliveira, 72 anos, fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU). Essa percepção, segundo ela, foi despertada em situações cotidianas, como a falta de respeito aos lugares preferenciais, o preconceito no mercado de trabalho e as falas etaristas ouvidas com frequência. “Tenho a impressão que estou fadada a morrer e que só por isso não me é permitido viver, sonhar e realizar”, relata.
Lenny, que também é formada em Direito e mestra em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade
Lenny Blue, 72, autora do livro “Idosidade: Crônicas de uma Mulher Negra para Inspirar Tâmaras” - Acervo Pessoal
Federal do ABC (UFABC), escreveu o livro “Idosidade: Crônicas de uma Mulher Negra para Inspirar Tâmaras” para reunir memórias e reflexões sobre a luta contra o racismo, o sexismo, o etarismo e outras formas de opressão.
Ao refletir sobre o envelhecer sendo uma mulher negra, Lenny aponta que o Brasil “não é um País seguro para o envelhecimento digno”. Para ela, o racismo estrutural potencializa as desigualdades e limita o acesso das mulheres negras às políticas públicas. Ela diz que o País “não está preparado para o envelhecimento da população ante ao surgimento de uma legião de velhos ‘sem-sem’, sem aposentadoria e sem emprego.”
A história pessoal de Lenny revela o impacto dessas desigualdades. A ativista interrompeu os estudos aos 12 anos para ajudar nas despesas de casa e só retornou à escola aos 40. “Só aos 49 iniciei a graduação tão sonhada no curso de Direito, aos 63 tirei a carteira da OAB e aos 71 ingressei no mestrado”, conta.
Sua pesquisa intitulada “Invisibilidade da Idosidade da Mulher Negra: Genocídio ou Apagamento” busca evidenciar as interseccionalidades entre raça, gênero e envelhecimento. Ingressar no mestrado aos 71 anos, enfrentando longas viagens de transporte público e olhares desconfiados, foi, segundo Lenny, um ato político.
“A idosidade me trouxe a possibilidade de ser um instrumento para a visibilidade da velhice da mulher negra e utilizo minha própria trajetória para referendar minha pesquisa”, afirma.
Hoje, ela diz enxergar o tempo como potência. “Na idosidade ele se torna mais lento, mais denso e mais precioso. Cada ano rompo a lógica da necropolítica e reafirmo a continuidade das ancestralidades que recusam desaparecer”, conta.
Para Lenny, envelhecer com consciência no Brasil é um ato de resistência. “Meu corpo carrega marcas de um país estruturalmente desigual, mas também é reivindicar um lugar de dignidade, memória e presença – afirmando que a velhice é um direito, e não um privilégio”, diz.
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