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Publicado em 10/06/2025, às 09h23 - Atualizado às 12h16
São Paulo, 10/06/2025 - Amar dói e dá trabalho. Esses são alguns dos pontos que aparecem no estudo “Narrativas Afetivas – como o brasileiro traduz o amor”, realizado pelas psicanalistas Carol Tilkian e Camila Holpert, também fundadora do Studio Ideias. O levantamento analisou cerca de 1 milhão de textos publicados entre 2023 e 2024 nas plataformas X (ex-Twitter), Bluesky, YouTube e portais de notícias, com apoio da ferramenta de escuta social Cosmo – Cultural Analytics and Insights, baseada em inteligência artificial.
A dor de amar é o sentimento mais presente nas conversas digitais. Intitulado “O amor dói”, o maior bloco de narrativas da pesquisa representa 25,6% do conteúdo analisado.
Traição, términos, frustração, rejeição, solidão e até o luto por quem se foi revelam o quanto os vínculos afetivos continuam sendo fonte de sofrimento profundo, cicatrizes emocionais e perguntas sem resposta e, para além disso, como pautam um contexto de descrença e desconfiança no amor presente. São tantas narrativas sobre dores que parece cada vez mais difícil acreditar num amor possível.
“Esse volume de textos ajuda a gente a escutar aquilo que grita, mas também aquilo que sussurra dentro dessas histórias”, diz Holpert.
As profissionais ficaram surpresas com o que encontraram. “O tamanho da dor chocou, principalmente por pensar que são apresentadas nas redes sociais”, revela Tilkian. Ela ressalta ainda que as redes costumam ser um espaço onde o amor é performado com histórias perfeitas, e o que foi constatado é que existe muito ódio.
“Para mim, o que me impressionou muito é que dentro desse amor que dói, a dor é muito mais projetada do que real. O que isso quer dizer? Não são pessoas que estão desabafando sobre uma separação que acabou de acontecer, uma traição recente. Essa dor projetada fala sobre o medo de amar, sobre a paranóia de ser traída, a insegurança, a sensação de insuficiência. É um eco de todas as dores coletivas, fazendo com que a gente esteja à espera de um desastre, à espera do pior”, explica Tilkian.
Holpert acrescenta ainda que amar dá trabalho. “Amar é um trabalho permanente. A gente fala disso sobre maternidade, por exemplo, mas não sobre o trabalho que dá construir relações de amor. Então, se você construiu alguma coisa, parabéns. Acabou, mas você construiu algo. Porém, essa sensação de falência é o que a gente mais escuta”, ressalta.
A pesquisa também revela a importância de pequenas histórias amorosas e cotidianas, muitas vezes negligenciadas. “Esse ideal já se provou impossível. Já as pequenas histórias amorosas são contadas e compartilhadas menos de um jeito épico e mais pelas sutilezas do dia a dia. Não que o dia a dia seja fácil. Este é um é um território de muita atenção também”, afirma.
As redes sociais, segundo Tilkian, não são a causa principal dos medos, mas elas amplificam o sentimento, que nasce da falta de conexões profundas e do acúmulo de desencontros afetivos. Holpert reforça que as pessoas tendem a sofrer publicamente e celebrar de forma épica, enquanto as pequenas histórias de amor são menos contadas e valorizadas, muitas vezes ofuscadas pela performance e pelos “superlativos nas redes sociais”.
Há também o uso de humor nos posts ao falar das dores amorosas nas redes sociais, sugerindo que rir do próprio sofrimento pode impedir a elaboração dessas dores, ao passo que é necessário falar sobre o que incomoda, em contraste com a cultura da "zoeira".
Holpert destaca que a pesquisa tem a intenção de abrir novas conversas sobre o amor, apresentando um diagnóstico com perguntas abertas, buscando futuras respostas.
As psicanalistas apontam que as “pessoas ainda são caretas” em relação a novas formas de amor. Tilkian diz que muitas vezes a abertura da relação é usada como tentativa de salvar uma crise do relacionamento.
O levantamento mostra alguns blocos de como o brasileiro expressa o amor publicamente. Além de "O amor dói", com 25,6% da amostra e já detalhado acima, os demais grupos de narrativas intepretados pelas psicanalistas são:
Dores e delícias do dia a dia a dois (23,6%) – A relação no cotidiano ganha cada vez mais espaço em comparação ao destaque para grandes celebrações e demonstrações de afeto. A rotina a dois é compartilhada e ganha vários tons. No positivo percebe-se a construção de “pequenos dicionários amorosos” com rituais, símbolos e signos particulares daquele casal. Dentro da rotina há também a normalização do campo de batalha e das tensões entre os casais, assim como o peso da rotina.
Coração em assembleia – a relação com o contexto do outro (19%) – Não existe relação a dois, existe relação com o mundo do outro. Relatos positivos e negativos sobre a presença marcante (e por vezes invasiva) da família, amigos e universo profissional do outro mostram como há menos espaço para o privado, já que o amor é cada vez mais uma experiência atravessada por pressões e julgamentos coletivos. Ao mesmo tempo, também revela um desejo latente de pertencimento a esse novo mundo. Não se sonha mais com o amor e uma cabana. O sonho agora é o amor na aldeia.
Casais de audiência (9,3%) – Relacionamentos de famosos e personagens que viram espetáculo público e matéria-prima para memes, torcida e fofoca.
Amor e tradição: o amor que segue o roteiro (8,3%) – Em tempos sem contornos e certezas, voltamos a querer os marcos tradicionais como sinal de compromisso: namoro, casamento, filhos e cerimônias públicas que validam o amor não só para mim mas para a “sociedade".
Amor dos superlativos (8,1%) – Existe uma narrativa de “jornada do herói” que finalmente encontrou seu par e, agora, esfrega sua vitória e superioridade na cara da sociedade digital. Declarações hiperbólicas, casais idealizados, grandes viagens, presentes e festas traduzem afeto como devoção pública.
Novas configurações do amor (4,1%) – Nas narrativas digitais parece que as novas configurações afetivas são uma espécie de “second life” da vida real - um projeto que tinha tudo pra emplacar, mas não rolou. Poliamor, triângulos, relações abertas e desejos que desafiam normas tradicionais são narrados com mais desconfiança e descrença do que como possibilidades. Isso diz de uma postura ainda conservadora e simplista de novas configurações de amor, reduzindo as reais possibilidades de reflexão.
Rebobinando amores (1,9%) – Num presente esvaziado percebe-se um escapismo através da saudade de amores antigos - vividos ou projetados - que continuam vivos no imaginário afetivo ou mesmo uma repulsa de vivências que deixaram marcas e merecem ser apagadas.
O país da sofrência - As dores amorosas: decepções, traições, saudades, são amplamente compartilhadas, reforçando uma cultura de sofrimento e desconfiança nos relacionamentos.
Normalização do amor como um campo de batalhas - Conflitos, xingamentos e descontrole emocional viraram parte banalizada das relações, como se brigar fosse natural no amor.
Novas formas de traição e de controle - Likes, emojis e mensagens criam novos conflitos e ampliam o controle no ambiente digital, tornando os limites da privacidade nebulosos.
A violência é um assunto – o amor já não justifica - Há mais consciência sobre abusos, mas muitos casos ainda se encerram em fofocas, sem denúncia ou proteção real.
A performance do fracasso amoroso - Desilusões viram conteúdo para humor e autoparódia. Sofremos em público, buscando audiência para a dor.
Amor é o novo Prozac - O parceiro é visto como “cura” para angústias pessoais, reforçando a ideia de que o amor resolve tudo.
O maravilhoso mundo do casal - Relações são exibidas nas redes como perfeitas, com exageros afetivos que nem sempre refletem a realidade.
Pequeno dicionário amoroso - Apesar dos conflitos, muitos casais criam rituais, códigos e gestos próprios, preservando a intimidade.
Aposta no amor como fonte de sentido - Mesmo com tantas dores, há desejo genuíno por afeto, acolhimento e conexão verdadeira.
Uma realidade amor "on demand" - A pressa e o imediatismo enfraquecem os vínculos, e o medo do abandono é vivido de forma exagerada.
Amores nostálgicos – Muitos buscam reencontros com ex-parceiros como tentativa de recuperar uma versão mais leve e feliz de si mesmos.
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