Nívia Uchoa/Governo do Estado do Ceará
Por Guilherme Matos e Guilherme Siqueira, especial para o Viva
redacao@viva.com.brSão Paulo, 02/11/2025 - No Dia de Finados, celebrado neste domingo, municípios de todo o Brasil vão se reorganizar para receber um alto fluxo de visitantes em seus cemitérios. A data é dedicada à lembrança e oração por entes queridos, mas entre os túmulos, alguns celebram as figuras conhecidas como santos populares. A esses personagens, normalmente vítimas de mortes injustas e violentas, os fiéis atribuem milagres de cura e bênçãos concedidas.
É o caso da aposentada Leda de Oliveira Soares, 76 anos. Moradora de Santa Maria (RS), ela conheceu a história de uma dessas santas durante uma visita ao Cemitério Ecumênico Municipal há cerca de 38 anos.Leda encontrou o túmulo por coincidência e percebeu os agradecimentos que outros devotos deixavam. Anos depois, quando surgiu um nódulo no pescoço de seu filho, ela lembrou da santa.
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“Rezei pedindo a intercessão dela junto a Deus. E eu recebi essa graça. Meu filho passou por uma cirurgia e, depois que foi retirado, não voltou a incomodar. Foi assim que eu me apeguei com a santa”, narra Leda.
Mariazinha Penna é o nome pelo qual ficou conhecida Maria Zaira Córdova Penna, morta aos 20 anos em 1953. A história da jovem foi reconstituída pelo pesquisador Marcelo Gabriel Ercolani, em dissertação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Segundo o estudo, Mariazinha morreu vítima de um câncer agressivo, mas o sofrimento e a serenidade com que enfrentou a doença comoveram a comunidade.
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Desde então, iniciou-se intensa peregrinação ao seu túmulo, onde a população reza, pede intercessão, agradece ou visita por simples curiosidade, dada a repercussão da história de fé e resignação perante à dolorosa doença.
Essa é uma das histórias espalhadas ao redor do Brasil de fé, com essas peregrinações ganhando ainda mais força no Dia de Finados.A tradição teve início no século XI, quando o abade Odilon de Cluny, na França, instituiu o 2 de novembro como o dia destinado a rezar pelas almas dos mortos. O gesto rapidamente se espalhou pelos mosteiros e foi oficializado pela Igreja Católica, tornando-se parte do calendário litúrgico.
A escolha da data também tem relação com o Dia de Todos os Santos, celebrado em 1º de novembro. Enquanto o dia 1º homenageia todos os santos que alcançaram o céu, o Dia de Finados, no dia seguinte, é dedicado à oração pelas almas que ainda estão em purificação espiritual.
“Dia de Finados é um momento de intensificação das peregrinações e da devoção. Nessa data, os túmulos de santos populares recebem um número significativo de visitas, oferendas, velas e votos. É quando a memória dos falecidos é reativada coletivamente, fortalecendo sua presença no imaginário popular e reafirmando seu papel como intermediários sagrados”, explica Renaldo Gomes, antropólogo e pesquisador da Universidade Federal do Ceará (UFC).
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O especialista é autor do artigo O sagrado entre nós: ritos e representações em torno dos santos populares. No texto, ele explica que essa santificação ocorre por conta da comoção coletiva diante da injustiça. “Não são as virtudes em vida que santificam, mas a morte marcada por sofrimento e não merecimento. A dor e a injustiça geram identificação e fazem surgir o santo como mediador entre o humano e o divino”, explica o pesquisador.
No catolicismo popular brasileiro, a canonização não depende do Vaticano, mas do povo. A devoção nasce da oralidade, da memória e das promessas cumpridas. “O título de santo reverte o status de finado”, diz. “A morte, para o devoto, não é o fim, mas uma passagem. O santo retorna à vida social como protetor, alguém com quem se conversa e a quem se pede ajuda”, complementa.
É o caso de uma santa popular sepultada em Santana do Cariri (CE). O culto começou após um crime brutal no ano 1941 que deu fim a vida de Benigna Cardoso da Silva, adorada por moradores como heroína da castidade. A beata tinha apenas 13 anos quando foi brutalmente assassinada no município do interior do estado, cidade onde morava na região do Cariri cearense.
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Órfã desde muito nova, a menina foi criada por duas irmãs, com relatos indicando sua devoção pela fé cristã. Aos 13, começou a ser importunada por Raimundo Alves Ribeiro, conhecido como Raul, de 17 anos.
“Em 24 de outubro de 1941, Benigna foi perseguida por ele quando foi buscar água em uma cacimba próxima ao sítio onde morava. Raul a perseguiu, forçou relações com ela e Benigna resistiu. Por resistir, foi assassinada a golpes de facão”, explica Joedson Kelvin, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador sobre a história da beata.
Após o feminicídio, sua imagem foi adotada pelos santanenses. O bairro dos Inhamuns abriga os principais pontos dos romeiros que buscam os favores da santa: o sítio onde morou e a cacimba onde buscava água. No local, moradores também construíram uma capela.
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A Igreja Católica assumiu a causa de Benigna em 2011, 70 anos após sua morte. Em 2022, foi beatificada pelo Vaticano. A romaria de seu martírio acontece todos os anos ao redor da data em que foi assassinada, atraindo cerca de 40 mil romeiros até a cidade de apenas 17 mil habitantes. No local, o governo do Ceará constrói um complexo religioso para Benigna, apostando em fortalecer o turismo na cidade.
A região do Cariri cearense é conhecida pelo turismo sacro, sendo também a terra do Padre Cícero. Joedson comenta que as romarias do dia de finados na região costumam se concentrar entre as cidades de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha, principais polos da região caririense.
No Norte do País, um fenômeno singular envolvendo um santo popular une tradições religiosas distintas. Em Manaus, o túmulo do rabino Shalom Muyal, no Cemitério São João Batista, tornou-se ponto de encontro entre judeus e católicos.
Segundo estudo de Rafaela Barbosa de Souza, a figura, falecida no início do século XX, foi sepultada na cidade. Sua memória ultrapassou os limites da fé hebraica: católicos passaram a atribuir a ele milagres e curas, transformando-o em um santo milagreiro do Amazonas.
A pesquisadora destaca que o caso do rabino Shalom Muyal revela um sincretismo religioso raro, em que um mesmo personagem é venerado sob olhares distintos. Para os judeus, não existe a figura do intercessor entre Deus e os homens. No entanto, com os milagres atribuídos, os católicos do município associaram este significado ao homem. No seu túmulo, os devotos deixam pedras e placas com agradecimentos.
Na capital paulista, município mais populoso do Brasil, a prefeitura espera uma alta movimentação nos cemitérios para este Dia dos Finados. Além das homenagens aos familiares, os túmulos também receberão devotos de figuras que marcaram a fé popular.
Entre esses nomes está o de Antoninho da Rocha Marmo, sepultado no Cemitério da Consolação, gerido por uma empresa privada.
Antoninho nasceu em 1918, já com a saúde frágil. Ainda criança, demonstrava um amor incomum pela fé: gostava de “celebrar missas”, aconselhava adultos e dizia ter pressentimentos sobre sua própria morte.
Faleceu em 1930, aos 12 anos, deixando um pedido à mãe: que construísse um sanatório para tratar crianças pobres. O desejo se concretizou anos depois, com a fundação do Sanatório Antoninho da Rocha Marmo, inaugurado em 1952 em São José dos Campos e hoje transformado em hospital infantil.
Os restos mortais de Antoninho foram levados para a Capela de Nossa Senhora da Saúde, no hospital que leva o nome dele em São José dos Campos (SP). No entanto, conforme relatado por funcionários ouvidos pela reportagem no Cemitério da Consolação, seu túmulo original continua recebendo visitas constantes ao longo de todo ano, inclusive, no Dia de Finados.
A história de alguns santos populares acabam tomando significados políticos, apesar de continuarem ligados à memórias de dor e injustiça. É o caso de Santa Dica, uma mulher que liderou um movimento messiânico e a luta armada em Goiás, foi vítima de violência policial, testemunhou um massacre e se tornou uma figura santificada desde a infância.
Dica teria realizado curas milagrosas ainda criança, quando, após episódios em que parecia morrer e voltar à vida (condição hoje entendida pela medicina como catalepsia), começou a ser procurada por pessoas que buscavam alívio para suas enfermidades.
Segundo o pesquisador Robson Gomes, Santa Dica não foi morta durante a violência policial que marcou sua liderança messiânica durante a década de 1920, mas sofreu um ataque que resultou em várias mortes em 1925.
Ela foi presa e passou por um processo judicial marcado por acusações de charlatanismo e prática de espiritismo, à época criminalizadas. Sua liderança religiosa mesclava práticas católicas e espíritas, e seu movimento reuniu centenas de seguidores em uma comunidade que defendia o uso coletivo da terra e resistia ao poder estatal.
Robson destaca que a memória e o culto a Santa Dica, apesar de invisibilizados em alguns momentos, ressurge especialmente em contextos de disputa por justiça social e reconhecimento histórico.
Apesar do caráter político, a figura também carrega a fé e seguidores católicos. Sua fama gera peregrinações constantes ao seu túmulo, localizado em Lagolândia, distrito de Pirenópolis, onde seguidores também realizam romarias especiais para pedir graças e agradecimentos.
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