'Cuidar do idoso é muito mais do que limpar a casa', diz advogada argentina
Reprodução/Linkedin
25/12/2025 | 08h00
São Paulo, 25/12/2025 – Não existem políticas públicas sem direitos humanos. Ao menos é isso que defende a advogada argentina María Isolina Dabove, uma das maiores especialistas em Direito da Velhice na América Latina.
Em entrevista ao VIVA, a pesquisadora discute a necessidade urgente de o Brasil ratificar a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos, da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), unindo-se aos mais de 20 países do continente que se comprometeram a proteger as pessoas idosas em nível internacional.
Dabove é pesquisadora principal do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas da Argentina (Conicet) e foi declarada Personalidade Destacada de Buenos Aires em 2025 por sua luta ativa pelos direitos das pessoas idosas.
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Sobre a necessidade de regulamentar a profissão de cuidador no Brasil, a advogada propõe uma mudança profunda na legislação argentina, que pode ampliar o debate brasileiro: retirar os cuidadores do âmbito do direito do trabalho doméstico e valorizá-los como prestadores de serviços especializados.
Cuidar de uma pessoa idosa é muito mais do que limpar a casa; requer conhecimentos de gerontologia, psicologia e atenção específica. Minha proposta é retirar esse trabalho do marco laboral e regulá-lo como um contrato de prestação de serviços no âmbito do direito privado", defende.
A entrevistada também combate o mito da "velhice inútil" e reforça a urgência de uma perspectiva de gênero na assistência; confira.
VIVA: Como você enxerga o cenário atual do cuidado com a pessoa idosa, considerando o aumento da longevidade?
María Isolina Dabove: A assistência às pessoas idosas cresce rapidamente porque cada vez mais indivíduos chegam a idades muito avançadas, 80 ou 90 anos, e precisam de apoio diário. Isso gerou enorme demanda por serviços de longo prazo e, em contrapartida, faltam profissionais capacitados. Hoje, dispomos de um instrumento essencial de direitos humanos, a Convenção Interamericana, que reconhece o cuidado como direito básico e dever dos Estados. A Corte Interamericana reforçou, em 2025, que essa responsabilidade é compartilhada pelo Estado, pela sociedade, pelas famílias e pelo mercado.
Quais são os principais desafios demográficos e sociais comuns ao Brasil e à Argentina?
Há grande semelhança entre a realidade social e demográfica dos dois países. Em ambos, a parcela da população com 60 ou 65 anos ou mais varia de 14% a 18%. O desafio comum é garantir um envelhecimento ativo e saudável. Persistem, contudo, muitos preconceitos e mitos negativos sobre a velhice. Existe a falsa ideia de que todos os idosos são inúteis, um peso para a família ou um custo para a sociedade. A maioria — quase 60% dos mais velhos — vive de forma robusta e quer continuar contribuindo para a comunidade.
Por que é tão importante que o Brasil ratifique a Convenção Interamericana de Direitos dos Idosos?
O Brasil ainda não ratificou a Convenção, embora possua o Estatuto da Pessoa Idosa, importante, porém insuficiente. O tratado exige uma mudança de olhar que o estatuto não abrange totalmente. Na Argentina, a ratificação conferiu hierarquia constitucional ao documento, e os juízes já começaram a derrubar leis ou práticas que violam os direitos dos idosos. É fundamental que o Brasil, país líder, adira a esse tratado para enfrentar o envelhecimento como questão global.
Você defende uma mudança na regulamentação da profissão de cuidador. Poderia explicar essa visão?
Na Argentina, o cuidado domiciliar é regido pelo direito laboral como emprego doméstico, o que considero inadequado. Cuidar de uma pessoa idosa é muito mais do que limpar a casa; requer conhecimentos de gerontologia, psicologia e atenção específica. Minha proposta é retirar essa atividade do marco laboral e tratá-la como contrato de prestação de serviços no âmbito do direito privado. A mudança reduziria a carga econômica sobre o aposentado, que muitas vezes não consegue arcar com os custos de uma empresa e recorre à informalidade. O modelo garantiria cobertura social ao cuidador mediante tributo proporcional, evitando a precariedade de ambos.
Você mencionou que o Brasil teria mais facilidade em adotar esse modelo de contrato do que a Argentina. Por que o sistema argentino é considerado mais rígido nesse aspecto?
Na Argentina, o direito laboral é muito forte e os sindicatos são poderosos. Em geral, essas estruturas não costumam considerar a "parte fraca" dessa relação específica, que, neste caso, é a pessoa idosa média, não os ricos e famosos. O sistema argentino é menos flexível na transição entre os marcos laboral e civil. Já o Brasil tem legislação mais "permeável", o que pode facilitar a adoção do modelo de prestação de serviços que propomos.
Como a questão de gênero influencia a estrutura atual do cuidado?
A cultura patriarcal impõe que o cuidado seja tarefa exclusiva das mulheres — filhas, netas e esposas — sob o pretexto de que seríamos "mais sensíveis". Contudo, a capacidade de cuidar é inerente a todos os seres humanos.
A Corte Interamericana destacou que as mulheres não podem ser as únicas cuidadoras. Precisamos de mudança profunda para que o cuidado seja reconhecido não apenas afetivamente, mas também economicamente, gerando novo mercado produtivo e acessível, em que a tarefa seja compartilhada por todos.
É possível pensar em políticas públicas eficazes sem o respaldo dos direitos humanos?
Lamentavelmente, não. Políticas públicas sem direitos humanos correm o risco de ser autoritárias ou de não alcançar quem realmente precisa. Os direitos humanos são a base da dignidade humana e da democracia, tratando o indivíduo como fim em si mesmo, e não como meio ou "coisa". Precisamos motivar as pessoas a imaginarem como querem envelhecer e trabalhar juntos para que os vínculos entre gerações sejam valorizados. Todos merecemos um lugar de qualidade no mundo.
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