Facebook Viva Youtube Viva Instagram Viva Linkedin Viva

Pesquisador brasileiro em Harvard alerta para crise do cuidado nos EUA

Acervo Pessoal

O VIVA conversou com o pesquisador brasileiro, especialista em antropologia médica na Universidade Harvard - Acervo Pessoal
O VIVA conversou com o pesquisador brasileiro, especialista em antropologia médica na Universidade Harvard
Por Paula Bulka Durães

22/12/2025 | 11h26 ● Atualizado | 11h27

São Paulo, 22/12/2025 – Qual o valor do cuidado? A questão da regulamentação da profissão de cuidador tem gerado divergências não só no Brasil, mas em inúmeros países que lidam com o rápido envelhecimento populacional.

O VIVA conversou com o pesquisador brasileiro David Amorim, especialista em antropologia médica na Universidade Harvard, que se dedica ao estudo da demência em pessoas idosas do estado de Massachusetts, especialmente na capital Boston, nos Estados Unidos (EUA).

Leia também: Governo lança Plano Nacional de Cuidados com investimento de R$ 25 bilhões

Apesar de contar com a maior economia do mundo - e com um Produto Interno Bruto (PIB) 13 vezes superior ao brasileiro em termos nominais -, os Estados Unidos enfrentam dificuldades semelhantes às do Brasil quanto à sobrecarga e à dinâmica do cuidado de pessoas idosas, pautado nas relações familiares e no abandono.

A grande diferença está no legado de uma nação na qual o sucesso familiar foi historicamente medido pela distância entre as gerações.

Outro ponto de atenção é a realidade precária das Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) nos EUA, chamadas de nursing homes, inacessíveis para parte expressiva da população de Massachusetts.

"Aqui, a média de custo é de pouco mais de US$ 500 o dia em uma instituição de longa permanência. Algumas, se tiverem cuidados específicos relacionados à memória para pessoas com demência, podem chegar a quase US$ 800 por dia", revela.

Caldas investiga os aspectos culturais, sociais e éticos do envelhecimento e das perdas cognitivas. Em entrevista, o mestrando revela as fragilidades das instituições de cuidado americanas, que enfrentam uma rotatividade de funcionários superior a 100% ao ano; confira.

VIVA: Como surgiu o seu interesse pela antropologia médica e o que o levou a pesquisar o cuidado de pessoas idosas em Harvard?

David Amorim: A minha jornada nos Estados Unidos começou porque eu sentia que precisava de um embasamento teórico mais sólido na atuação do cuidado e que esse conhecimento fundamentasse o meu exercício clínico. Pelo modelo de ensino daqui, consegui ancorar a teoria e a prática do que significa cuidado dentro do contexto da minha pesquisa acadêmica e atividade profissional. A antropologia apareceu por acaso em uma aula sobre determinantes sociais e fatores culturais que afetam o cuidado e a medicina no mundo. Foi aí que me apaixonei.

Quais as principais diferenças que você observa entre a realidade do envelhecimento nos Estados Unidos e no Brasil?

A solidão é um problema muito sério e comum aqui. Diferente do Brasil, onde temos aquela realidade multigeneracional, nos EUA isso é mais comum em algumas famílias de imigrantes. Na Nova Inglaterra, a noção de sucesso da família era ter seus filhos indo para longe conquistar terras; esse distanciamento entre gerações é visto como sucesso familiar até hoje. Atualmente, o modelo de domicílio que mais cresce no país é o da mulher solteira sem filhos.

Quem são os principais responsáveis pelo cuidado dessas pessoas idosas hoje?

Como no Brasil, mulheres vivem mais que homens e são a maioria das pessoas idosas. Quanto aos cuidadores, mais de 80% são familiares e, desses, mais de 80% são mulheres. Geralmente é a esposa, a filha mais velha ou a única filha solteira. Mas esse perfil mudará, pois as mulheres estão no mercado de trabalho e há mais domicílios sem filhos, o que trará questionamentos sobre quem será o responsável pelo cuidado no futuro.

Como funcionam as ILPI americanas (nursing homes) e quais os níveis de assistência oferecidos?

As instituições são um “contínuo de cuidado”. Temos o independent living, onde o ambiente é pensado para o idoso, mas há independência; o assisted living, onde a pessoa precisa de ajuda mínima; e o long-term care, que é a nursing home propriamente dita, com cuidado 24 horas. O maior problema atual é a falta de staff [funcionários] e a altíssima rotatividade da enfermagem, o que afeta diretamente a qualidade do cuidado.

É verdade que os custos dessas instituições podem ser inacessíveis para a maioria das famílias?

Sim, são extremamente caras. Em Massachusetts, a média é de mais de US$ 500 por dia, podendo chegar a quase US$ 800 para cuidados de memória.

Como menos de 6% da população tem seguro para cuidado de longo prazo, a realidade é cruel. Para conseguir subsídio estatal, a pessoa precisa primeiro atingir a linha de pobreza. O estado liquida seus bens retroativamente em cinco anos até você não ter mais nada; só então o subsídio começa.

Além dos custos, você presenciou situações de precariedade estrutural nessas instituições?

Sim. Em minha experiência clínica atendendo na emergência, presenciei de perto a realidade de ILPIs com graves problemas estruturais e de salubridade. É um choque sensorial: muitas vezes, o que mais impacta ao entrar nesses locais é o cheiro forte, uma mistura de falta de higiene básica e abandono, que denuncia imediatamente a precariedade. Mas é importante dizer que isso não decorre apenas de negligência individual do staff, mas sim de uma falta crônica de recursos e de uma sobrecarga desumana de trabalho, onde as pessoas estão exaustas e sem estrutura mínima para oferecer dignidade.

Por que existe tanto estigma em torno da internação de pessoas idosas?

O senso comum considera a internação como negligência e abandono. Mas a internação frequentemente não é uma escolha; é motivada por uma necessidade repentina, como um acidente ou doença, que impede a pessoa de ficar em casa. A decisão é forçada e assustadora, deixando a família sem tempo para preparação financeira ou psicológica.

Quais são os maiores desafios enfrentados pelos profissionais que atuam no cuidado?

O primeiro é o salário, que geralmente é o mínimo para um trabalho exaustivo e de extrema intimidade. O segundo desafio é a sobrecarga: muitas vezes espera-se que o técnico de enfermagem também realize limpeza e cozinha. É um trabalho difícil e invisibilizado, apesar de sua importância vital.

Você menciona que um dos grandes problemas é a ausência de uma definição universal para o “ato de cuidar”. Como isso impacta o sistema?

Não existe uma definição universalmente aceita do que significa cuidar. Hoje, o cuidado é medido de forma redutiva por atividades de vida diária (ADLs) e atividades instrumentais de vida diária (IADLs), que quantificam apenas o alimentar ou dar banho, mas não capturam a reciprocidade, o reconhecimento do sofrimento e o laço emocional inerentes ao cuidado.

Enquanto não tivermos uma métrica que englobe essa dimensão humana, o cuidado continuará sendo marginalizado nos currículos médicos e na valorização profissional.

Como o tabu em torno da morte afeta o planejamento desse cuidado?

Esse é um fator crucial. As pessoas precisam se acostumar a falar sobre a morte, pois o silêncio gera surpresa e ansiedade. Frequentemente, os filhos de idosos em cuidados paliativos superestimam o medo que os pais têm de morrer. Como não se fala sobre o assunto, as decisões acabam sendo tomadas em momentos de crise, de forma repentina e assustadora, sem que a família tenha tido tempo para se preparar financeira ou psicologicamente.

Você cita a Hebrew Senior Life como um modelo de excelência. O que a diferencia das demais?

A Hebrew Senior Life, afiliada a Harvard, é um modelo que valoriza o staff, o que se reflete em uma rotatividade de apenas 3%. É um campus que promove o engajamento multigeneracional, incluindo uma escola no local. Lá, não chamam os idosos de pacientes, mas de residentes, e o trabalho é focado na desmedicalização e na preservação da dignidade da pessoa idosa.

Comentários

Política de comentários

Este espaço visa ampliar o debate sobre o assunto abordado na notícia, democrática e respeitosamente. Não são aceitos comentários anônimos nem que firam leis e princípios éticos e morais ou que promovam atividades ilícitas ou criminosas. Assim, comentários caluniosos, difamatórios, preconceituosos, ofensivos, agressivos, que usam palavras de baixo calão, incitam a violência, exprimam discurso de ódio ou contenham links são sumariamente deletados.

Gostou? Compartilhe

Últimas Notícias