'Violência contra os idosos é cultural no País', diz criadora do Disque 100

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O Viva conversou com a criadora do Disque 100 e do Insituto Longevida, Sandra Regina Gomes - Envato
O Viva conversou com a criadora do Disque 100 e do Insituto Longevida, Sandra Regina Gomes
Por Paula Bulka Durães [email protected]

Publicado em 16/06/2025, às 08h00 - Atualizado às 10h32

São Paulo, 16/06/2025 -  A violência contra a pessoa idosa cresce de forma alarmante, de acordo com os dados recentes divulgados pelo Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Considerando só as taxas de agressões interpessoais, aquelas que abrangem o ambiente doméstico ou comunitário, o aumento é de 142,2% no País, entre 2013 e 2023. 

A consultora Sandra Regina Gomes
"Lei, tem. O que falta é responsabilidade pública", diz Sandra Regina Gomes, criadora do Disque 100- Foto: Divulgação

E 71% dos casos de violência estão dentro de casa. "Temos que, antes de tudo, cuidar de quem cuida", diz Sandra Regina Gomes, gerontóloga e ex-coordenadora de Políticas Públicas para Pessoas Idosas na Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo.

Também foi coordenadora-geral dos Direitos do Idoso da Secretaria dos Direitos Humanos, Governo Federal e Conselheira do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI), quando criou o Disque 100-Módulo Idoso. Hoje, Gomes segue trabalhando com envelhecimento com sua consultoria, a Longevida.

Ela defende combater a violência através da educação e da formação de uma rede de assistência, bem como políticas públicas de prevenção, principalmente em um cenário de transição demográfica.

Afinal, a população brasileira está envelhecendo. Hoje, as pessoas com mais de 60 anos já são 15% da população, e essa taxa deve chegar até 37,8%, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). "Precisamos de ações contínuas, não dá para agir só no mês de junho, da conscientização", diz. Leia  a entrevista exclusiva ao Viva:

Chegamos à metade do Junho Violeta. Quais ações são esperadas neste mês de conscientização?

Quem anda pelas ruas pode ter notado que alguns equipamentos e serviços públicos estão iluminados de noite com essa cor violeta, para chamar a atenção de como a população idosa sofre em relação aos maus-tratos. É uma data que tem toda uma agenda internacional, não está restrita ao Brasil. Nós que trabalhamos com envelhecimento, temos várias atividades, rodas de conversa, oficinas, seminários. Tenho dado aulas e participado de vários encontros para chamar a atenção, porque aumentou muito o número de violência sofridas pelas pessoas idosas. A cidade de São Paulo tem 23 fóruns, grupos de reuniões de pessoas idosas, junto com seus familiares. Estou indo para Rondônia ainda este mês e depois para o Acre. E acredito que a mídia precisa se envolver também com campanhas educativas para sensibilizar a população. Mas precisamos de ações contínuas, não dá para agir só no mês de junho.

Em suas palestras você fala sobre prevenção. Como a violência acontece?

Você deve ter visto no Disque 100, e também pelo Atlas da Violência, o dado de que  71% das violências contra a pessoa idosa ocorrem dentro de casa. São as relações familiares que estão em jogo. Temos que, antes de tudo, cuidar de quem cuida. Existe um esgotamento da família, financeiro e operacional, e um desconhecimento de como se caminha o envelhecimento. Isso porque nós éramos um País de jovens e agora nós somos uma nação de cabelos brancos. A pirâmide demográfica já tem um outro formato.

Sobre políticas públicas, quais legislações protegem hoje a pessoa idosa?

O presidente da República sancionou uma lei que cria a Política Nacional de Cuidados. Essa lei traz, inicialmente, os cuidados necessários para três níveis da população: criança, adolescente, pessoa com deficiência e pessoa idosa. Mas nós temos também a Política Nacional do Idoso, que é de 1994, o Estatuto da Pessoa Idosa, de 2023. Antes mesmo, já tínhamos a Lei Orgânica de Assistência Social, que garante o benefício de prestação continuada para a população idosa acima de 65 anos e também para pessoas com deficiência. Nós temos importantes marcos legais e todos eles perpassam pela questão da violência. O que falta, ao meu ver, é a responsabilidade pública.

Você tem acompanhado os projetos de lei em tramitação no Legislativo?

Sim. Eu tenho lido projetos de lei que estão aí focando na condenação, no aumento de penas. E sim, é uma violência e ela precisa ser cobrada desse agressor. Mas não adianta nada fazer isso se você não tiver um trabalho preventivo, que é justamente usar os instrumentos legais que nós já temos e estruturar a sociedade para que ela possa se relacionar com o processo de envelhecimento com respeito e dignidade. Estou surpresa de ver que os números têm aumentado, inclusive da violência patrimonial. Os filhos vão se apropriando dos bens, vão institucionalizando os seus pais para ficar com os cartões. Então, é esse trabalho preventivo que eu e tantas pessoas fazemos. Não digo que as penas não sejam importantes, mas para mim é imprescindível reconhecer o valor do processo de envelhecimento.

Nós temos uma grande população LGBT, negra, indígena e em situação de rua envelhecendo, e não é suficiente aumentar a pena. O combate à violência precisa estar atrelado a uma sensibilização em relação às pessoas e a capacitação dos serviços de atendimento à população idosa. 

Quais são os fatores que dificultam o enfrentamento? 

O primeiro deles é a cultura. Culturalmente, a velhice é percebida como uma fase de declínio, descarte, e dependência. Isso que “autoriza” as pessoas a praticar violência. E eu não gosto muito dessa palavra, mas eu vou usá-la agora: precisamos reforçar o empoderamento da pessoa idosa. Esse papel na sociedade precisa ser fortalecido. Ela precisa se apropriar dos seus direitos. Então, quando alguém da família pede um cartão para fazer retirada de dinheiro ou tomar empréstimo, não é para fazer - a não ser que essa pessoa queira mesmo fazer. Outro fator é o institucional. Faltam políticas públicas na saúde, assistência, segurança pública, educação e moradia. Os índices recentes são impactantes: onde estão morando esses idosos? Estão morando na rua ou em algum estabelecimento comercial. Isso é uma violência institucional. 

E como podemos agir?

Rompendo com o silêncio, provendo que todos denunciem. Você não precisa se identificar, mas precisa denunciar. Se perceber um ato de violência no seu prédio ou na rua, precisa imediatamente fazer a denúncia no Disque 100. O número de ocorrências no País é bem maior do que o número de registros, porque as pessoas associam a violência com uma agressão física, no máximo psicológica. E hoje, o maior índice é o da negligência. 

Abandono, você diz?

Não, omissão. Existe também a violência caracterizada como abandono, mas a negligência é assim: “eu vejo e não faço nada”. Tem pessoas que precisam de um atendimento depois da violência sofrida dentro de casa e o governo não oferece nenhum serviço de acolhimento, isso também é omissão. Existe também a autonegligência, do tipo “ vou morar sozinha e comer só enlatados”, sem cuidar da saúde ou do bem-estar.

E quanto ao etarismo, o preconceito e discriminação com relação a idade?

Isso está dentro da violência psicológica. Etarismo, idadismo, ageísmo são todos sinônimos deste tipo de preconceito, e reforçam que realmente a sociedade precisa se preparar para o envelhecimento da população. A linguagem é a primeira instância desse processo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já faz esse alerta, temos que tomar cuidado sobre o que falamos, pensamos e como agimos. Quando você encontrar uma pessoa idosa no ônibus, você precisa levantar. Não use diminutivos, como “que velhinha linda” ou “que cabelinho branquinho”. Não trate como criança, não infantilize o idoso. 

Como criar redes de proteção?

Isso é urgente. Funciona assim: dentro de um território, precisa ter uma padaria, um transporte coletivo, uma calçada, um supermercado, uma unidade básica de saúde, todos esses aparatos unidos em prol de acolher e atender a pessoa idosa. E cada um dos atores de uma sociedade tem um papel importante nisso. Por isso que a gerontologia é a ‘bola’ da vez. Precisamos de mais jornalistas, fonoaudiólogos, médicos e arquitetos gerontólogos. É um esforço coletivo.

Leia também: Serviços de cuidados a idosos: entenda como contratar e que pontos observar

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