São Paulo, 05/08/2025 - A crença de que a carne brasileira é insubstituível - pela competitividade, volume e qualidade - é confrontada com a realidade de um mercado global com grandes players. A imposição de uma
tarifa de 50% sobre a carne bovina brasileira que entra nos Estados Unidos, a vigorar a partir de 6 de agosto, cria um cenário de incerteza para as exportações brasileiras e põe em xeque a viabilidade do produto nacional no mercado americano.
A medida, que se soma à taxação de 26,5% já existente, eleva o imposto total para mais de 76%, tornando a
carne brasileira praticamente inacessível para o consumidor norte-americano, conforme especialistas ouvidos pelo Broadcast Agro. A grande questão que paira sobre o setor é,
caso a taxação se prolongue, até que ponto o Brasil corre o risco de perder um mercado que levou anos para conquistar.
Segundo o gerente da Consultoria Agro do Itaú BBA, César de Castro Alves, "é uma grande arrogância a gente dizer que, em carne bovina, os americanos são dependentes do Brasil; não são". O analista aponta Austrália, Argentina, Uruguai e Paraguai como possíveis substitutos da proteína brasileira no mercado estadunidense. "Esses países possivelmente podem capturar um pouco das vendas que deixarem de ser feitas pelo Brasil." Ele complementa que, apesar de serem produtores menores do que o Brasil, "durante algum tempo podem atender os Estados Unidos".
Especialistas da área concordam que, com a nova tarifa, a substituição do Brasil como fornecedor será inevitável. Apesar de o País ser um gigante da pecuária e detentor do maior rebanho comercial do mundo, a medida anula a vantagem competitiva de preço e volume, abrindo uma janela de oportunidade para outros exportadores.
Larissa Alvarez, analista sênior de inteligência de mercado da StoneX, reforça ao Broadcast Agro que os principais substitutos são a Austrália, "que historicamente está em primeiro lugar em embarques da proteína aos EUA" e o Canadá, destacando que "produtores e exportadores menores de carne bovina, como Paraguai e Uruguai podem, igualmente, abocanhar parte do mercado". O sócio-diretor da Scot Consultoria, Alcides Torres, concorda que a Austrália seja o principal concorrente, mas com a ressalva de que os australianos exportam para os americanos com um preço mais elevado. Ele também aponta Argentina, Uruguai e Paraguai, apesar de não terem o volume do Brasil.
Preço competitivo
Torres ressalva, entretanto, que, embora a substituição seja possível, há um custo: "Em condições normais, sem tarifa, dá para substituir, mas em preço, dificilmente". Ele ressalta que, antes do tarifaço de Trump, o Brasil se diferenciava justamente por seu preço competitivo, mas que a taxação deve anular essa vantagem, fazendo com que a carne brasileira se torne mais cara do que a australiana, por exemplo, no mercado americano.
Relatório do Rabobank divulgado ontem aponta que, com o tarifaço, a expectativa de exportação de carne bovina brasileira para os Estados Unidos é de retração. "A gente está projetando, a partir de agosto, uma
queda de 50% na demanda dos Estados Unidos", afirmou o analista Wagner Yanagizawa. Mesmo com aumento de 113% nas compras americanas no primeiro semestre, a projeção é a de que o Brasil termine o ano com 250 mil toneladas exportadas ao país, avanço de apenas 10% ante 2024. Por isso, segundo o analista, frigoríficos já buscam redirecionar cargas para mercados como Arábia Saudita, Egito, México e Sudeste Asiático.
Mesmo a carne brasileira podendo ser substituída, Alvarez, da StoneX, avalia que os importadores dos EUA terão de buscar a commodity "em várias fontes" para suprir o fornecimento atual. Ela reforça que ninguém tem um rebanho comercial do tamanho do brasileiro e, por isso, o País "se destaca em termos de volume e capacidade de fornecimento - tanto para o mercado interno quanto para o externo". Segundo a especialista, o Paraguai, por exemplo, tem um rebanho de 14 milhões de cabeças, enquanto o Brasil tem mais de 200 milhões de cabeças.
No ano passado, lembra Alvarez, a Austrália e o Canadá ainda figuravam como os principais exportadores de carne bovina para os Estados Unidos, em primeiro e segundo lugar, respectivamente. Este ano, entretanto, no primeiro semestre, o Brasil se "descolou" e passou a liderar o fornecimento para os americanos. "Devemos lembrar, porém, que o Canadá já foi taxado por Trump, o que pode ter tido reflexo na queda das exportações do país para os EUA."
Austrália é concorrente sério
O tipo de carne que o Brasil exporta para os norte-americanos é majoritariamente de dianteiro bovino, uma carne magra utilizada na fabricação de hambúrgueres nos EUA, diz Torres, da Scot. Ele explica que, embora a carne brasileira seja "magra, de qualidade e competitiva", a Austrália "é um concorrente sério e capaz de suprir essa demanda", diz. "A Austrália é um país pecuário desenvolvido, eles têm condição de substituir o Brasil, sim", detalha Torres.
Alvarez, da StoneX, diz que a Austrália poderia competir principalmente em carnes congeladas (a -18 graus), e não resfriadas (mantidas entre zero e 4 graus). No caso das exportações brasileiras de carne bovina para os EUA em 2025, 95,5% foram de carne congelada, ou 149,5 mil toneladas. "Esta carne vai principalmente para a indústria de hambúrgueres, para produtos processados (empanados e pratos prontos) e food service de baixo/médio valor agregado", descreve. Já a Austrália, embora exporte um bom volume de carne resfriada, também tem condições de fornecer boa quantidade de carne congelada - em 2025, já vendeu 20.800 toneladas para os norte-americanos.
Além disso, a nova tarifa torna a carne brasileira mais cara do que a australiana, que já custa mais normalmente, de acordo com Larissa Alvarez. Segundo a consultora da StoneX, a carne bovina australiana tem batido recorde de preços no mercado global, atingindo por volta de US$ 6.300 a tonelada. Já o Canadá tem uma proteína mais cara ainda, de cerca de US$ 9.700 a tonelada, "podendo alcançar até US$ 10.880 em alguns produtos". Já o Brasil, sem tarifaço, vendeu seu produto por US$ 7.570 a tonelada - no caso da carne refrigerada - e por US$ 4.940 a tonelada, no caso da carne congelada, conforme dados do Comextat, do Ministério da Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). Aplicando-se a tarifa de 76%, a carne congelada brasileira entraria nos Estados Unidos a US$ 8,7 mil a tonelada, já acima da carne australiana. E a carne resfriada passaria a valer US$ 13,3 mil a tonelada.
Embarques inviáveis
Não à toa o presidente da
Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), Roberto Perosa, disse, recentemente, que os embarques da proteína vermelha aos Estados Unidos ficariam "inviáveis". Segundo Castro Alves, do Itaú BBA, a competitividade do Brasil, que se baseava em volume e preço, "perderá essa vantagem com as tarifas de Trump".
Se o tarifaço perdurar, e com fornecedores substituindo a contento o mercado estadunidense, Castro Alves diz ainda que o Brasil pode perder as vendas para lá a longo prazo. "Nós podemos perder esse mercado e aí teria que ter um rearranjo. Não dá pra desconsiderar, isso já aconteceu em outros momentos", alerta. Segundo ele, o setor teria o "imenso trabalho de ter que encontrar outros destinos". A China, por exemplo, poderia absorver o excedente de carne, mas "a um preço muito mais baixo".
Alvarez, da StoneX, concorda. Ela destaca que, mesmo que o Brasil tenha se tornado o principal fornecedor de carne bovina para os Estados Unidos este ano, "a tarifa pode reverter esta situação". "A taxação fará com que o Brasil perca a preferência dos importadores americanos", diz. Alvarez avalia também que o setor pecuário brasileiro terá que se adaptar a um novo cenário de exportação. "A China, que já compra a maior parte da carne exportada pelo Brasil, pode ter um papel crucial ao absorver o excedente de carne que não for embarcado para os EUA", diz.
A analista acrescenta, porém, que as importações da China este ano ainda são uma "incógnita". "Os chineses aumentaram muito suas compras no primeiro semestre", comenta. "Resta saber se eles anteciparam as compras que costumam fazer no segundo semestre - especialmente para o ano-novo lunar, em janeiro do ano que vem - ou se compraram mais no primeiro semestre por causa da forte demanda interna."
Apesar dos percalços que se avizinham, Torres, da Scot, também mantém a perspectiva de que o Brasil pode redirecionar sua produção, já que a exportação para os EUA corresponde a uma pequena parcela da produção total. "A gente pode redirecionar toda essa carne para outros mercados, inclusive o mercado interno", conclui.