São Paulo, 22/10/2025 - Num futuro muito próximo, um cliente que chegar ao shopping de carro vai receber automaticamente em seu WhatsApp uma promoção de um restaurante de sua preferência. Se aceitar o cupom, poderá ver, enquanto come, uma sugestão de uma loja de material esportivo do mesmo shopping, na qual já tenha comprado, para que aproveite descontos. Se a aquisição for efetuada, o lojista terá "bancado" o desconto oferecido pelo restaurante.
E as chances de isso acontecer são cada vez maiores considerando um universo de 14 bilhões de predições feitas mensalmente pela inteligência artificial na plataforma do iFood, que está testando esse modelo.
Predição e hiper personalização de compra
Predições nada mais são do que uma leitura antecipada sobre o perfil do consumidor: a inteligência artificial usa dados de comportamento do usuário para "adivinhar" o que ele quer comprar.
A razão pela corrida das empresas por esse mapeamento antecipado é simples: uma chance muito maior de venda. Nos cálculos do iFood, uma sugestão hiper personalizada aumenta em quatro vezes a propensão de um pedido.
O delivery brasileiro vem despontando como um dos principais nomes locais a aplicar o uso da inteligência artificial no negócio, o que se traduz em resultado financeiro. A empresa estima que 30% do lucro operacional (Ebtida) seja resultado do avanço nessa área. A expectativa é dobrar isso nos próximos anos.
O CEO do iFood, Diego Barreto, diz que o grupo está entre as três empresas do ramo que mais crescem em rentabilidade no mundo. "O Brasil é um país de classe média muito achatada, que tem uma população menor do que Estados Unidos e China. Portanto, temos uma menor economia de escala. A capacidade de entregar um crescimento de rentabilidade no patamar de top 3 global nessas condições vem exatamente do uso da inteligência artificial", afirma Barreto, em entrevista à Broadcast.
No ano-calendário encerrado em março de 2025, o iFood dobrou o lucro operacional, para US$ 226 milhões (R$ 1,3 bilhão). As receitas avançaram 30%, para US$ 1,3 bilhão (R$ 7 bilhões), num universo de 120 milhões de pedidos mensais.
Modelo próprio de IA
Um novo salto começa a ser dado no iFood a partir da criação do modelo próprio de inteligência artificial, uma espécie de ChatGPT capaz de trazer mais personalização aos usuários, com potencial de ampliar em 66% a taxa de acertos nas sugestões. A ferramenta abre um leque mais amplo de negócios, como o exemplo do shopping acima.
A expectativa é integrar ainda dados de plataformas de empresas da Prosus, grupo dono do iFood, o que inclui informações de viagens da Decolar e de compras de ingressos da Sympla.
Há um esforço para disseminar de forma mais profunda a cultura de inteligência artificial internamente. O iFood planeja contratar 100 engenheiros para "ensinar" os funcionários a criar e treinar modelos. Trata-se de uma mão de obra muito específica e que exigirá uma busca mundial por profissionais.
Temos preferência por contratar aqui, mas nesse caso a maioria dos talentos está fora. Já temos engenheiros em Portugal, na França, em todo o mundo."
Outra frente de avanço para talentos serão as aquisições. A expectativa é destinar cerca de R$ 500 milhões a startups, do total de R$ 17 bilhões em investimentos previstos pelo iFood no período entre abril de 2025 a março de 2026.
Desde 2018, quando percebeu a densidade que a inteligência artificial traria aos negócios, o iFood vem tentando colocar isso na raiz da estratégia. Há uma equipe dedicada ao tema, mas a ideia é que todos na empresa saibam lidar com as linguagens e possam criar a partir disso.
A meta interna é que até o fim deste ano cada um dos 7 mil funcionários do grupo tenha desenvolvido ao menos um agente de inteligência artificial, um assistente para facilitar tarefas repetitivas.
Hoje, esses agentes se somam a 180 modelos de "machine learning", subconjunto da IA, e ajudam a dar sugestões de mudanças em cardápio que permitam restaurantes vender mais, em soluções antifraudes no pagamento ou na realocação dos 450 mil motoboys em um dia de chuva, por exemplo. O uso acelerado da inteligência artificial chamou a atenção da OpenAI, dona do ChatGPT, quando ainda era uma startup, em 2022, e as duas empresas passaram a atuar mais próximas.
Para o iFood, o impacto da disseminação de IA se traduz numa maior velocidade em escalar o negócio, hoje são 60 milhões de usuários na plataforma e a meta é chegar a 80 milhões em 2028; na redução de custos, como no subsídio cruzado entre restaurante e lojista do exemplo do shopping; e em personalizar mais para elevar as vendas e melhorar a experiência de consumo.
Barreto diz que o esforço para inovação é um dos motivos que tornam remotas as chances de a empresa abrir capital na Bolsa. Para dar um exemplo, ele cita o caso de uma engenheira do grupo que está ajudando o Brasil a construir um foguete, fora do iFood. "Consigo construir ciência aqui dentro do Brasil com gente muito boa. Uma empresa privada (de capital fechado) ganha muito poder em focar nisso porque não tem que se preocupar com pressões de curto prazo do mercado de capitais."
Capacidade de previsão
Para o professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), Cesar Alexandre de Souza, um dos méritos da aplicação desse modelo de IA na plataforma de delivery é o fato de juntar dados de origens diferentes para traçar um perfil de usuário mais acurado e ser capaz de fazer previsões melhores.
"Conseguir unir dados de passagens aéreas com dados de hábitos de consumo de alimentos, isso realmente pode potencializar o negócio. Além disso, o que a empresa tem de riquíssimo é essa quantidade de 14 anos de transação", diz Souza. Ele pondera, no entanto, que um desafio em bases com histórico tão longo é manter as predições assertivas, sem vícios do passado.
O sócio da consultoria Varese Retail, Alberto Serrentino, destaca que a personalização em escala com uso de IA é uma das maiores alavancas para empresas de consumo. Ele ressalta que o iFood tem uma cultura e "musculatura forte" para o uso de tecnologia e desenvolvimento, além de apontar que o momento de mercado da companhia exige ações de fidelização dos clientes.
Novos concorrentes
A empresa líder em seu ramo no País agora lida com a chegada do 99 Food e da Keeta, da Meituã, companhia chinesa gigante global de delivery. "Preservar a base de clientes em um momento no qual se está sendo atacado por novos entrantes e novos concorrentes é algo estrategicamente importante", diz.
A entrada da concorrência coloca o iFood numa posição de ameaça na qual não costuma estar. No passado, a companhia foi apontada como a responsável por tirar concorrentes do mercado e passou a enfrentar queixas de práticas anti-competitivas.
Numa acusação mais recente, até a inteligência artificial foi alvo de reclamações. Uma representação da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) sustenta que o avanço na área privilegia parceiros exclusivos, como motoboys que fazem mais corridas para o iFood. A entidade alega ainda que a plataforma impõe serviços como a solução de pagamentos com taxas acima da média do mercado, bem como supostas vendas casadas.
Barreto rebate as acusações. Segundo ele, o nível de faturamento e participação de mercado da empresa não configuram concentração de mercado. "Uma empresa com o meu nível de penetração em cada um dos segmentos, não se pode considerar como a formação de um ecossistema que de alguma forma cria situações anti-concorrenciais."