Autistas adultos enfrentam dificuldades no mercado e temem retrocessos

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Especialistas destacam que autistas são comumente mal interpretados em suas capacidades e que a falta de inserção no mercado prejudica a real inclusão - Envato
Especialistas destacam que autistas são comumente mal interpretados em suas capacidades e que a falta de inserção no mercado prejudica a real inclusão
Por Bianca Bibiano bianca.bibiano@viva.com.br

Publicado em 28/08/2025, às 13h52

São Paulo, 28/08/2025 - Apesar dos avanços no diagnóstico e da maior visibilidade do transtorno do espectro austista (TEA), as barreiras sociais e estruturais continuam a limitar a participação de adultos com austismo no mercado de trabalho.

Segundo especialistas ouvidos pelo Viva, essa dificuldade fica acentuada tanto no momento da inserção profissional quanto na manutenção do emprego. "No mercado de trabalho, autistas têm dificuldade de se encaixar. Existe uma cobrança excessiva por conta da própria sociedade, que persiste mesmo com a aceitação do diagnóstico", explica o psicólogo Fábio Coelho.

Segundo o Censo Demográfico 2022, o Brasil tem 1.345.284 pessoas autistas com mais de 20 anos de idade, e a exclusão aparece já na formação acadêmica: apenas 0,8% dos adultos autistas com 25 anos ou mais estão no ensino superior, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O índice contrasta com os 18,4% da população geral avaliada nessa condição, revelando o tamanho da desigualdade enfrentada por esse público.

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Para Coelho, faltam iniciativas que ajudem a desenvolver habilidades específicas e empresas realmente inclusivas, preparadas para receber esses profissionais. "Esse tratamento é importante, porque muitas não estão preparadas para ter autistas no corpo de colaboradores", pontua.

O neurocientista Matheus Trilico reforça que a dificuldade no mercado de trabalho é consequência direta da invisibilidade do autismo em adultos. "Muitas vezes, os adultos autistas são mal interpretados em suas capacidades. Suas dificuldades de comunicação, comportamentos repetitivos e outras características do TEA podem ser vistas como falhas de profissionalismo, resultando em exclusão ou até discriminação", observa.

Para ele, reconhecer essas competências é essencial para garantir autonomia financeira e social. "A sociedade perde o talento e a criatividade de pessoas que têm muito a oferecer, mas são marginalizadas por uma visão estreita e limitada do que significa ser 'normal' ou 'competente'."

Atualmente, Trilico conduz um mapeamento de autistas no Brasil e defende políticas de inclusão mais robustas para adultos, incluindo treinamentos sobre o TEA para gestores e funcionários, além de adequação nos ambientes, como oferecer espaços mais tranquilos ou flexibilidade nos horários, para que os profissionais autistas possam contribuir com suas habilidades. "O reconhecimento das capacidades dos autistas no mercado de trabalho é essencial para que possam alcançar a autonomia financeira e profissional", conclui.

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Riscos de retrocessos

Esse debate, cada vez mais presente na vida prática dos autistas adultos, também começa a ganhar espaço no Congresso Nacional e no Judiciário. Este mês, por exemplo, a Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados promoveu audiência pública sobre inclusão de pessoas neurodivergentes, com foco nas dificuldades enfrentadas por autistas no mercado de trabalho.

Na ocasião, Guilherme de Almeida, presidente da Associação Autistas Brasil e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), destacou que apenas 15% das pessoas com deficiência em geral são dependentes da família ou do poder público. No caso do autismo, o cenário se inverte: cerca de 85% dos autistas dependem de apoio familiar e estatal. "A falta de políticas para esse público é o que chama mais atenção", alertou.

Ele também criticou a ausência de pesquisas sobre a vida adulta no espectro e disse que isso prejudica uma visão mais realista do quadro atual. "De toda produção mundial sobre autismo, 98% é voltada para crianças e adolescentes, e apenas 2% para adultos. É fundamental a intervenção precoce, mas é no período adulto que passamos a maior parte da vida."

Almeida disse também que a associação teme que atuais debates no comitê dos direitos da pessoa com deficiência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) possam prejudicar ainda mais a situação, especialmente no que diz respeito à aplicação da Lei Berenice Piana (nº 12.764), que reconhece a pessoa com TEA como pessoa com deficiência para efeitos legais.

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Ele afirma que há atualmente tentativas dentro do comitê no CNJ de condicionar esse reconhecimento à chamada avaliação biopsicossocial, mecanismo ainda sem regulamentação no Brasil, o que poderia levar a uma dificuldade de obtenção de direitos e acesso à cotas tanto na educação quanto em vagas de trabalho.

"Eu participava do comitê do CNJ e naquele espaço era mencionado que a Lei Berenice Piana não deveria ser considerada. A orientação seria de que, para uma pessoa ser reconhecida como autista, seria necessário passar por avaliação biopsicossocial, de acordo com a Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência. A grande questão é que não existe regulamentação sobre essa avaliação, validando os critérios. Ao mesmo tempo, se tenta tirar direitos por um processo não constitucional", afirmou Almeida.

Ao Viva, o conselheiro Guilherme Feliciano, representante do CNJ no comitê, afirmou que a instituição "não aceita retrocessos em relação a nenhum grupo de pessoas com deficiência, tampouco os autistas".

Reconheceu, contudo, que há uma tendência internacional de adotar o critério biopsicossocial, que envolve avaliação multiprofissional, com médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e outros, mas que isso não deve prejudicar os direitos de quem já tem essa condição reconhecida por meio apenas de critérios biomédicos. 

"A partir da convenção de Nova York, que o Brasil ratificou e internalizou em seu sistema jurídico, tratar de deficiência é, em larga medida, tratar das barreiras que a sociedade oferece às pessoas com deficiências. Reconhecer essas barreiras e aferir o quanto essas pessoas têm de dificuldades, no dia a dia, em função da sua condição - e não necessariamente de uma suposta 'doença' - é algo que exige uma avaliação para além da questão médica; por isso mesmo, busca-se uma avaliação biopsicossocial.[....] Mas em nenhum aspecto o comitê pretende retroceder em direitos ou revogar qualquer ponto da Lei Berenice Piana que projeta pessoas com TEA, nem abonaríamos isso", concluiu.

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