Autistas 50+: mais de 520 mil desafiam apagamento e buscam apoio tardio

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Com dificuldades para acessar diagnósticos mais precisos, número de autistas acima dos 50 anos pode ser ainda maior, apontam especialistas
Por Bianca Bibiano bianca.bibiano@viva.com.br

Publicado em 15/08/2025, às 08h00 - Atualizado às 15h21

São Paulo, 15/08/2025 - Quase sempre o autismo era retratado com base em estereótipos infantis, o que contribui para o apagamento de milhares de adultos e idosos neurodivergentes que não se encaixam nesse perfil. Os casos, contudo, não são raros. Dados divulgados em maio pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base no Censo Demográfico de 2022 mostram que o País têm mais de 521 mil autistas acima de 50 anos de idade, de um total de 2,4 milhões identificados.

São pessoas que cresceram e entraram no mercado de trabalho antes que a área da saúde e a legislação olhassem para suas necessidades com mais atenção. Essa falta de olhar atento nas décadas passadas faz os especialistas afirmarem que o total de adultos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) pode ser subestimado.

"Muitos autistas foram taxados ao longo da vida como esquisitos, deprimidos, isolados, ganharam rótulos. Quando recebem o diagnóstico, podem abandonar os estereótipos", diz Anita Brito, diretora técnica do Próximo Degrau e neurocientista especialista em TEA com formação pela Universidade de São Paulo (USP) e instituições internacionais como Harvard e Stanford.

"O autismo não está na moda; o que acontece é que agora conhecemos melhor algo que sempre existiu. Sempre estivemos aqui, mas antes chamavam de loucura, idiotice, imbecilidade." 

Adultos e idosos podem ter autismo?

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Anita Brito, neurocientista especialista em TEA, recebeu o diagnóstico ao pesquisar sobre a condição do filho. - Divulgação

Especialistas entrevistados pelo Viva explicam que sim, adultos e idosos podem ser diagnosticados com autismo em qualquer idade. Contudo, alertam que ele não surge na vida adulta.

"O TEA é uma condição do desenvolvimento do cérebro que ocorre pela junção de fatores genéticos e ambientais, sendo também hereditário. Ele se manisfesta ainda na infância e, dependendo dos sintomas, pode ser diagnosticado inclusive em bebês", diz Brito.

No Brasil, o assunto ganhou força entre adultos principalmente a partir da Lei Berenice Piana (Lei n. 12.764), que em 2012 equiparou os direitos dos autistas ao das pessoas com deficiência, permitindo a busca por tratamentos, suportes e benefícios, quando necessário e em qualquer idade.

No âmbito da saúde, o diagnóstico leva em consideração a Classificação Internacional de Doenças (CID 11) e também os parâmetros do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, na sigla em inglês). 

Diagnóstico tardio é principal desafio

Segundo o médico neurologista Matheus Trilico, os adultos com autismo podem enfrentar desafios significativos, incluindo dificuldades em comunicação social, padrões de comportamento repetitivos e alterações sensoriais intensas.

"Para esses indivíduos, o diagnóstico tardio pode ser uma verdadeira revelação, mas também um fardo pesado, dado o tempo perdido sem as orientações e tratamentos adequados. Ele impacta diretamente o bem-estar emocional e psicológico dos adultos autistas. Sem saber o que está acontecendo com eles, muitos acabam desenvolvendo transtornos secundários, como depressão, ansiedade e crises de identidade, agravados pela falta de compreensão tanto de si mesmos quanto da sociedade."

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Trilico diz também que a prevalência do autismo em adultos acima de 50 anos permanece subestimada, principalmente devido à dificuldade diagnóstica nessa faixa etária e à escassez de dados epidemiológicos robustos. 

"Estudos recentes utilizando dados americanos sugerem que a prevalência do autismo entre adultos de 55 a 64 anos fica em torno de 9,5 para cada mil pacientes, com aumento progressivo ao longo da última década. Embora esse crescimento seja menos acentuado em faixas etárias mais avançadas em comparação com adultos jovens."

Quais são os sintomas do autismo em adultos 50+

O psicólogo especialista em TEA, Fábio Coelho, explica que a avaliação de um adulto autista é complexa e deve ser feita por um neurologista ou neuropsiquiatra.

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Fábio Coelho, psicólogo especialista em TEA, explica que o autismo não surge na vida adulta - Foto: Divulgação

"No caso dos adultos, é importante observar se essas características estavam presentes na infância. Se a pessoa começou a ter sintomas na vida adulta, não é autismo".

Segundo ele, é importante analisar se as características e questões comportamentais sempre estiveram presentes. Em seguida, deve-se procurar  um neurologista ou neuropsiquiatra capacitado para fazer a avaliação neuropsicológica.

De modo geral, os sintomas de autismo incluem dificuldades nas áreas da comunicação e interação social, bem como comportamentos repetitivos e questões sensoriais, como intolerância a cheiros, sons e toque.

Anita Brito explica que esses sintomas variam de intensidade ao longo da vida. "Não bruscamente, mas, sim, por uma necessidade de adaptação à demanda social. Na infância, por exemplo, há dificuldade de socialização na escola. Mas na vida adulta, muitos aprendem a mascarar para se adaptar ao mercado de trabalho. Isso leva a dificuldades e riscos, inclusive com maior índice de suicídio entre autistas".

Embora haja subdiagnóstico devido à falta de instrumentos validados e a tendência de camuflagem dos sintomas, Matheus Trilico diz que as principais características clínicas do autismo após os 50 anos incluem persistência dos déficit em comunicação social, reciprocidade e padrões restritos e repetitivos de comportamento. Ele menciona que algumas evidências apontam redução na frequência de sintomas comportamentais e neuropsiquiátricos com o envelhecimento.

"Comorbidades associadas, médicas e psiquiátricas, são altamente prevalentes nessa população. Distúrbios gastrointestinais atingem mais de 68% dos pacientes, epilepsia, doença de Parkinson e obesidade também são relevantes", exemplifica. 

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O neurologista Matheus Trilico aponta que características autísticas podem ser subdetectadas em idosos -Foto: Divulgação

Do ponto de vista psiquiátrico, Trilico cita o aumento significativo de transtornos como esquizofrenia, transtornos de personalidade, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e um risco elevado de autoagressão. "Condições associadas ao envelhecimento como osteoporose, doenças cardiovasculares, câncer e demências também são mais frequentes em adultos autistas idosos". 

Ele diz ainda que adultos autistas acima de 50 anos apresentam limitações importantes em empregabilidade, e cita uma taxa de desemprego de até 54% nesse grupo.

"O diagnóstico permanece predominantemente clínico, com o uso de instrumentos padronizados, cuja validade para idosos ainda é limitada. Além disso, há evidências de que características autísticas podem ser subdetectadas em idosos, especialmente em contextos de depressão e ansiedade, o que reforça a necessidade de atenção especializada em geriatria psiquiátrica."

Guilherme Cosme, neuropsicólogo especializado em Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) e Terapia Comportamental Dialética (DBT) na INSELF Neuropsicologia Avançada, observa que vivemos em um País que envelhece rapidamente, mas que ainda negligencia de forma significativa as necessidades da população idosa.

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Guilherme Cosme, neuropsicólogo: "Quando se trata de pessoas idosas no espectro autista, a negligência se aprofunda". - Foto: Divulgação INSELF

"Quando se trata de pessoas idosas no espectro autista, essa negligência se aprofunda, tornando essa parcela da população ainda mais invisibilizada. Faltam pesquisas, escasseiam os serviços públicos adequados e há uma carência quase absoluta de espaços de escuta e acolhimento."

Em artigo enviado ao Viva, ele diz que o diagnóstico, nesse cenário, não é apenas um papel ou um rótulo: é um instrumento legítimo de luta por acesso a direitos básicos, como serviços de saúde mental qualificados, acompanhamento neuropsicológico e psicológico voltado para as especificidades do envelhecimento, benefícios assistenciais e condições reais de acessibilidade em ambientes públicos e institucionais.

Reconhecer e nomear o autismo na velhice é, portanto, uma forma de reivindicar cuidado, visibilidade e dignidade."

Níveis de autismo

Desde a publicação do DSM-5, o autismo passou a ser entendido como um espectro único, organizado em três níveis de suporte: nível 1 (autismo leve), nível 2 (autismo moderado) e nível 3 (autismo severo).

No nível 1, geralmente a pessoa apresenta maior autonomia nas atividades diárias, já no nível 3, vivencia dificuldades sérias para se comunicar e interagir, exigindo apoio constante e prejudicando a realização de atividades básicas. Há casos, inclusive, em que a pessoa pode requerer o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

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Anita Brito alerta que esses parâmetros não são estanques, pois os níveis variam de acordo com os sintomas e variam individualmente. Por isso, ela menciona que existem autismos, no plural. "Em adultos, isso acentua a complexidade do diagnóstico, pois por vezes pode ser confundido com outras condições, como depressão, ansiedade e TDAH, com o qual compartilha a mesma origem genética", explica.

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A experiência da pesquisadora na área partiu da própria família: seu filho foi diagnosticado com o transtorno ainda criança. Posteriormente e já adulta, ela também foi diagnosticada, assim como seu irmão e seu pai, cujo autismo foi detectado após os 80 anos. "No caso do meu pai, a análise envolveu entrevistas com pessoas da família para entender como ele era no passado e foi identificado que os sinais sempre estiveram lá: ele nunca teve amigos, tinha diversos comportamentos repetitivos, era isolado."

Eu estudo o tema e trabalho com isso para que outros não passem pelo que passamos".

Tratamento não é sinônimo de cura

Segundo Matheus Trilico, após o diagnóstico, os adultos autistas frequentemente enfrentam dificuldades para acessar tratamentos e terapias adequadas. "Embora existam estratégias terapêuticas para crianças, as abordagens focadas em adultos ainda são escassas". Ele diz que a falta de serviços especializados e a falta de profissionais capacitados agravam a situação.

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“O tratamento para autistas adultos é um desafio porque, até hoje, a maioria dos recursos e pesquisas sobre o TEA é voltada para crianças. Isso cria uma lacuna de suporte que resulta em sofrimento emocional e social para aqueles que nunca tiveram a chance de entender sua condição de maneira adequada."

Para o médico, é necessário desenvolver programas de tratamento específicos que abordem as questões relacionadas ao autismo na vida adulta, como a independência, a integração social e o manejo de desafios sensoriais.

Capacitar mais profissionais, como psicólogos, terapeutas ocupacionais e psiquiatras, para atender a população autista adulta é uma urgência. O suporte contínuo e especializado ao longo da vida é crucial para o desenvolvimento de uma sociedade inclusiva."

No campo do tratamento, o neurologista aponta algumas abordagens para adultos:

  • Terapia cognitivo-comportamental (TCC), para ajudar no manejo da ansiedade e desenvolver habilidades sociais;
  • Apoio psicológico contínuo, que respeite a singularidade de cada pessoa;
  • Grupos de apoio e comunidades autistas, que favorecem o pertencimento e o compartilhamento de experiências;
  • Quando indicado, acompanhamento médico para sintomas associados, como ansiedade e depressão.
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