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Por Felipe Cavalheiro
[email protected]O debate sobre o projeto de lei que pretende mudar 1.122 artigos do Código Civil de 2002 ganhou destaque no Senado Federal nos últimos dias, com indicações de que em breve poderá entrar em votação. Um dos destaques da PL nº 4 de 2025, da autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), protocolada em janeiro deste ano, é o novo Livro de Direito Civil Digital.
O livro propõe dez capítulos que tangem temas como contratos, perfis, patrimônio e herança no mundo digital. Entenda a seguir como ele pode mudar o relacionamento das pessoas com os dados disponibilizados online.
Um esforço do novo livro é dar maior validade ao que ocorre online, como a aceitação da assinatura digital para diversas situações, por exemplo, uma quitação de dívida. O maior passo para essa digitalização está no segundo capítulo do livro, que estabelece a “identidade digital como meio oficial de identificação dos cidadãos em ambientes digitais”.
A virtualização, que já é comum em outras áreas do direito, é um avanço esperado para o Código Civil, mas ainda pode encontrar obstáculos, como explica Alexander Coelho, sócio do Godke Advogados e especialista em Direito Digital.
“O texto do anteprojeto acerta ao reconhecer a identidade digital como meio oficial de identificação, mas ainda falta concretude: como essa identidade será operacionalizada? Qual o papel da iniciativa privada nisso? E como garantir que o cidadão mais vulnerável – como idosos ou pessoas com baixo letramento digital – não seja excluído desse processo?”
Segundo o levantamento TIC Domicílios 2024, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC), 82% das pessoas com 60 ou mais não utilizaram nenhuma forma de governo eletrônico nos últimos 12 meses, como agendamentos online ou consultas de documento pela internet.
Coelho destaca que, para não excluir ainda mais essas pessoas dos serviços públicos, a implementação da identidade digital deveria ter como espinha dorsal a acessibilidade, e se atentar a três pilares: infraestrutura segura e descentralizada, interfaces compreensíveis até mesmo por quem nunca navegou na internet e ampla campanha de conscientização e capacitação.
“Ainda estamos mais próximos de um direito digital para quem já sabe usar tecnologia do que de um direito digital acessível para todos”, concluiu o advogado.
O quinto capítulo do livro tem o papel de consolidar o que é o patrimônio digital e como permitir sua passagem hereditariamente, por testamento. Tal patrimônio compreendendo ativos como criptomoedas, milhas aéreas, contas em plataformas, conteúdos audiovisuais e perfis em redes sociais. Os herdeiros não terão acesso às mensagens privadas do falecido, ao menos que o contrário tenha sido expresso por ele em testamento.
Coelho explica que essa definição é um avanço com relação às leis atuais: “Hoje, o que temos é um vácuo jurídico preenchido por decisões esparsas e pela incerteza prática: familiares que não conseguem acessar memórias digitais de entes falecidos, ou até herdeiros que disputam cripto ativos trancados por senhas indecifráveis”
Mas o especialista atenta também para as incógnitas que permanecem:
“O desafio será na regulamentação prática: como acessar, preservar e distribuir bens digitais de forma segura, legítima e respeitosa à vontade do falecido? E, sobretudo, como garantir isso sem violar direitos de terceiros, como contatos em redes sociais?”
Desde que foi apresentada, a proposta do novo Código Civil vem sendo alvo de debates. Muitos juristas criticaram a redundância dos artigos, por legislarem sobre temas para os quais já havia jurisprudências anteriores e, no caso do direito digital, o Marco Civil da Internet. Outros, como foi o caso de Coelho, pontuam que ter essas normas expressas no Código civil traz “sistematização e perenidade”, permitindo uma maior segurança.
Analisando especificamente o caso do Livro do Direito Civil, a maioria das críticas focou justamente no quanto um Código Civil deve ser duradouro, em contraposição às tecnologias, que mudam constantemente. Quando entra em temas como inteligência artificial ou neuro direitos, o Código lida com problemas atuais, como a responsabilidade das plataformas digitais quanto ao conteúdo sensível publicado nelas, mas não tem como prever quais caminhos essas inovações podem tomar, nem quais implicações jurídicas elas podem acarretar.
Apesar de reconhecer os problemas, e que essas previsões quanto o caminho legal das tecnologias deve ser calibradas, Coelho também questiona o quão rígidas precisam ser essas normas, e conclui: “Talvez o erro não seja tentar antecipar o futuro. O erro seria continuar legislando como se estivéssemos no passado”.
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