São Paulo, 08/12/2025 - A legislação brasileira trata os atestados e receituários médicos falsos como crime, enquanto os conselhos de medicina endurecem a fiscalização e os especialistas aprimoram cada vez mais a certificação digital para coibir a venda ilegal desses documentos. Um esforço que não tem sido suficiente para impedir o crescimento desse tipo de ilegalidade.
Atualmente, com apenas alguns cliques, é possível obter atestados e receitas médicas preenchidos ou em branco para finalidades que vão da mera justificativa de faltas no trabalho até obtenção de remédios controlados.
Um problema grave que atinge principalmente empresas do setor privado e médicos, que muitas vezes só tomam conhecimento de que são vitímas quando se deparam com a abertura de um processo ético pelos Conselhos de Medicina.
Um crime sem estatísticas
A falta de rastreabilidade está entre os principais fatores que dificultam um levantamento exato de quantos atestados falsos são comercializados mensalmente no País. Considerando isso, o médico cardiologista e presidente da Saúde Digital Brasil, Carlos Pedrotti, estima que de 30% a 40% dos atestados emitidos mensalmente sejam falsos. Ele explica que chegou a estes números após consultorias feitas por empresas de pesquisas, que fizeram suas análises por amostragem.
A Saúde Digital Brasil é uma associação sem fins lucrativos e considerada uma importante representante do setor empresarial da saúde digital. Atualmente, reúne empresas que desenvolvem tecnologias e prestam serviços que vão de telessaúde a telemedicina.
O cardiologista e presidente da instuição acredita que a emissão de atestados com assinatura digital da ICP-Brasil poderia ser uma solução para os problemas de falsificação. Para Pedrotti, esse sistema de verificação de identidade praticamente garante a autenticidade e a inviolabilidade de documentos digitais, mas ressalta que são necessárias algumas ponderações.
“A digitalização resolve a falsificação, mas ela não surte efeito quando uma pessoa habilitada, um médico, frauda um atestado que é verdadeiro, porém, com uma informação que não é verdadeira, o que inclusive seria um caso de fiscalização. Nenhum processo é imune a falhas.”
Especialistas ouvidos pelo VIVA alegaram que a solução do problema não está na criação de normas ou legislações específicas, mas na existência de um controle interno eficaz, seja ele em clínicas, cooperativas ou operadores de saúde.
É a opinião, por exemplo, da advogada e professora de compliance Patricia Punder. Segundo ela, é necessária a existência de uma fiscalização mais rígida das instituições quanto à emissão de atestados e receitas.
“A legislação atual é boa, ela padroniza a emissão de atestados médicos, mas sem uma política de compliance eficaz e moderna, ela se torna inócua.”
O problema para os Conselhos
Para o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, Angelo Vattimo, há dois tipos de atestados com teor “falso”. O primeiro são os atestados fraudados por golpistas, que muitas vezes utilizam indevidamente dados de médicos sem que estes saibam, já o segundo tipo são aqueles emitidos eventualmente por médicos, que atestam um diagnóstico falso.
Conversa para compra de Ozempic sem receita - Reprodução
Quando tais fatos chegam ao conhecimento do Cremesp, é instaurada uma sindicância. Caso sejam constatados indícios de um possível ato ilegal se incia um processo ético-profissional, que pode resultar em penalidades dispostas no Código de Processos Ético-Profissional do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Já em casos de documentos comprovadamente falsos, órgãos como o Ministério Público (MPSP) são acionados, pois trata-se de crime e não apenas de infração ética.
O Cremesp diz que tem algumas iniciativas como a criação de um QR Code pessoal, intransferível e com todos os dados do médico, como nome, número de CRM e até da instituição de formação. A ferramenta, lançada no começo deste ano, pode ser incorporada ao carimbo do profissional e utilizada em vários documentos.
“Essa é uma forma de garantir mais segurança e transparência tanto para o médico como para a população, que poderá checar de maneira rápida e simples quem é o profissional que está prestando atendimento”, diz Angelo Vattimo.
Na prática, o acesso ao mercado clandestino de compra e venda de atestados e receitas médicas não requer dificuldade.
Com apenas alguns cliques, a reportagem do VIVA se deparou com plataformas ofertando todos os tipos possíveis de receitas e atestados, já preenchidos ou em branco.
Grupo criminoso de venda de atestadaos falsos no Instagram - Reprodução
Em uma dessas plataformas, testamos o sistema de compra para aquirir um atestado por R$75,00, via PIX. O documento dava cinco dias de licença devido a quadro de Influenza A e continha todas as informações de uma médica em atividade. Apesar de ser completamente falso, ele ainda possuía um QR Code que ao ser acessado atestava sua “veracidade”.
Nós entramos em contato com o Instagram, via email, para obter um posicionamento a respeito, porém, não obtivemos retorno até o momento.
O serviço on-line de compartilhamento de fotos e redes sociais, onde encontramos diversos anúncios de venda de receitas e até de medicamentos controlados, não disponibiliza outros canais de contato aos usuários.
O médico sem respaldo
Atestado falsificado obtido pelo portal VIVA nas redes sociais, onde é vendido livremente - Reprodução
No atestado comprado pela reportagem consta o nome da médica Ana Lucia Carvalho de Mendonça. A dermatologista, que localizamos em um consultório na cidade do Rio de Janeiro, se mostrou indignada com a utilização do seu nome em São Paulo.
Ela não quis conceder entrevista, mas relatou por telefone que há cerca de um ano tem recebido informações que seus dados estão sendo usados em ações criminososas.
A médica afirmou que vem tomando todas as medidas legais e cabíveis junto à polícia e demais autoridades, mas até agora sem solução. A profissional nos disse também que tem tido pouco apoio do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj).
Em nota, o Cremerj esclareceu que o uso ilegal de dados pessoais e profissionais de um médico inscrito no conselho regional, assim como de qualquer cidadão, é um ato criminoso e deve ser apurado pelas autoridades policiais. Sobre o caso da médica Ana Lucia Carvalho de Mendonça, a instituição informou que não existem procedimentos em nome da mencionada.
A contabilista Rose Lopes Aquino explica que, diante da quantidade de atestados médicos falsos, muitas empresas têm redobrado os cuidados. Ela destaca, por exemplo, a exigência de que o atestado apresentado pelo funcionário seja apenas do plano de saúde mantido pela companhia. “As empresas procuram se defender como podem, e quando descobrem que o atestado é falso, a demissão é por justa causa e a situação pode até ser levada à Justiça”, destaca.
O emprego de um atestado médico falso configura ato de improbidade e infração contratual de natureza grave prevista no artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).Quem faz, compra, vende ou usa atestado falso pode responder por falsidade documental (artigos 297 ou 298 do Código Penal) ou uso de documento falso (artigo 304 do Código Penal), com penas que podem variar de dois a seis anos de prisão, além de multa.
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