Ativista busca preencher lacunas da conscientização da Aids pela arte
Reprodução/Adriana Bertini
11/12/2025 | 14h03
São Paulo, 11/12/2025 - A arte pode ser muito mais do que um objeto de apreciação em museus; ela pode ser uma tecnologia de saúde pública. Essa é a premissa que orienta a trajetória de Adriana Bertini, artista gaúcha que há três décadas entrelaça a luta contra a Aids com a preservação ambiental. Em um trabalho que vai de oficinas comunitárias a exposições internacionais, ela defende que a produção artística deve ser reconhecida como uma "ferramenta de prevenção e adesão" ao tratamento do HIV.
A conexão de Bertini com o ativismo começou cedo, aos 11 anos, quando ingressou no Greenpeace, preocupada com a limpeza de áreas periféricas e a reciclagem. Contudo, foi durante a Eco-92, no Rio de Janeiro, que uma palestra transformou sua percepção: o relato de que animais marinhos estavam morrendo asfixiados por preservativos descartados nos oceanos.
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Em pouco tempo, em 1994, a realidade da epidemia de Aids invadiu sua vida pessoal. Trabalhando no teatro, Bertini viu muitos amigos morrerem em uma época em que os medicamentos ainda eram escassos e chegavam de maneira desviada, em muitos momentos. "Eu sentia muito o medo de quem morria de Aids", relembra.
De 1980 a setembro de 2025, foram registrados 1.165.533 casos de Aids no Brasil, com uma média anual de 35 mil novos casos nos últimos cinco anos completos. Desde o início da epidemia até 31 de dezembro de 2024, foram notificados 402.300 óbitos tendo o HIV ou a Aids como causa básica, segundo dados do Boletim Epidemiológico de HIV e Aids de 2025 do Ministério da Saúde.
Na década de 90, a dor de ver seus amigos falecerem devido à doença levou Bertini ao voluntariado no Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (GAP), onde dava aulas de aquarela para crianças com transmissão vertical (de mãe para filho), uma população que ela considera ainda hoje invisibilizada e sem voz política ativa. “É o grupo que eu sempre procuro estar mais presente e com mais foco, porque vejo que é uma área ainda muito velada”, observa.
Neste ano, o Brasil eliminou a transmissão vertical do HIV e alcançou a menor taxa de mortalidade decorrente da doença nos últimos anos — o País manteve a taxa de transmissão abaixo de 2% e a incidência da infecção em crianças abaixo de 0,5 caso por mil nascidos vivos.
Os resultados apontam que o Brasil conseguiu de forma consistente interromper a infecção de bebês durante a gestação. Porém, Bertini ressalta que aquelas crianças que foram infectadas nos anos anteriores hoje são adultos que vivem com o vírus e ainda enfrentam estigmas.
Estética da prevenção
Movida pelos projetos sociais que atuava por meio da arte, a ativista viu sua virada artística ocorrer realmente em 1995, quando recebeu uma caixa com 144 preservativos de uma instituição pública que a instigou a criar algo com o material, devido à sua inclinação para o trabalho artístico em projetos sociais.
Ao investigar a origem e o destino desses insumos, ela descobriu que, na época, preservativos reprovados eram enterrados, o que gerava um problema ambiental grave, já que o material demorava a se decompor, somando-se ao alumínio e plástico das embalagens.
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Desde então, Bertini utiliza produtos como preservativos e insumos médicos vencidos — como espéculos vaginais e placas de teste — para criar suas obras. "Não existe incineração limpa", afirma a artista, explicando que a queima desses materiais hospitalares gera gases poluentes.
Seu trabalho mais icônico envolve a confecção de vestidos feitos com preservativos tingidos e costurados, processos que levam no mínimo 40 horas por peça. Essas obras não servem apenas para alertar sobre o meio ambiente, mas funcionam como "quebra-gelos" para diálogos difíceis.
Bertini relata casos de pais que, diante de suas obras em exposições, conseguiram conversar pela primeira vez sobre sexualidade com seus filhos.
"Quando você vê um objeto de arte, o preservativo já está ali. Ele abre um diálogo multidisciplinar."
Arte e conscientização
Para Bertini, a arte preenche lacunas onde a palestra tradicional falha. Ela critica a visão da arte apenas como "terapia" ou cura de autoestima e defende seu papel didático na "mandala da prevenção combinada", estimulando o pensamento, entendimento e adesão à prevenção para todos os tipos de infecção sexualmente transmissível (IST's).
Atualmente, ela desenvolve estratégias visuais para incentivar a adesão medicamentosa. Em uma dinâmica recente chamada "Qual é o seu retrato?", ela utiliza quadros com comprimidos para ilustrar diferentes níveis de adesão ao tratamento e seus impactos na saúde mental e física. A abordagem visual toca profundamente jovens que vivem com HIV, muitas vezes levando-os a refletir e a retomar o tratamento, já que, frequentemente, eles abandonam o tratamento durante um período, segundo Bertini.
Além das galerias, o foco da ativista está na base comunitária e na educação sexual, especialmente diante do aumento de relações sexuais precoces e do tabu que ainda cerca o tema no Brasil.
De acordo com o Ministério da Saúde, no período de 1991 a setembro de 2025 foram registrados 175.803 casos de infecção pelo HIV em jovens de 15 a 24 anos, correspondendo a 25,7% do total de casos notificados no país.
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Em 2024, homens de 20 a 29 anos responderam por 44,7% dos novos casos registrados entre o sexo masculino, enquanto adolescentes de 15 a 19 anos representaram 5,2%. Ainda no mesmo ano, o número de novas infecções pelo HIV em mulheres em idade reprodutiva (15 a 49 anos) representou 81,4% dos casos notificados no sexo feminino.
Esse padrão ressalta que jovens adultos continuam sendo um grupo de alta incidência, demandando intensificação de ações educativas, ampliação da testagem e fortalecimento das estratégias de prevenção segmentadas.
Contudo, os dados também apontam um aumento no número de casos relativos às pessoas com mais de 50 anos. Houve um crescimento na participação de mulheres desse grupo entre os novos casos de infecção pelo HIV, que aumentou de 10,9% em 2014 para 17,0% em 2024. Entre os homens, o aumento foi mais moderado, de 7,6% para 9,0% no mesmo período.
Os dados indicam um envelhecimento da epidemia e mostram a necessidade de ações específicas para essa população, incluindo estratégias de prevenção voltadas para a sexualidade na maturidade.
"Você não precisa falar de Aids para falar de Aids", diz Bertini, ilustrando como é possível cruzar conscientização sexual, meio ambiente e arte para engajar diferentes públicos.
Desafios futuros
Atuando também como consultora de mobilização de recursos para o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids), Bertinivê com preocupação o cenário político e financeiro global, com o fechamento de ONGs e a escassez de verbas que afetam diretamente a ponta do atendimento.
“Há a perspectiva de que o Unaids feche em 2027, antes mesmo de acabar com a Aids em 2030”, comenta Bertini.
Em 2021, na Assembleia Geral das Nações Unidas sobre o HIV, os estados-membros comprometeram-se com um conjunto de metas globais que colocariam os países no caminho para alcançar o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de acabar com a Aids como uma ameaça à saúde pública até 2030.
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Porém, no início do ano, o governo dos Estados Unidos encerrou o financiamento do Plano de Emergência do Presidente dos EUA para o Alívio da Aids. O comunicado apontou que o encerramento ocorreu por “conveniência do governo dos EUA” e para alinhar com as prioridades da agência e o interesse nacional — o corte do programa impacta ações de tratamento e prevenção de diversos projetos ao redor do mundo.
Estimativas da Unaids indicam que, se os serviços de tratamento e prevenção do HIV apoiados pelos EUA entrarem em colapso total, poderão ocorrer 6 milhões de novas infecções por HIV e 4 milhões de mortes relacionadas à Aids além das previstas entre 2025 e 2029.
“O maior risco são os trabalhos de base comunitária. Porque a falta de financiamento afeta diretamente a ponta, que é onde estão as maiores incidências de infecção por HIV. O risco da falta de financiamento afeta diretamente as pessoas que mais precisam", avalia Bertini.
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