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Abandono afetivo: nova lei garante indenização, mas Justiça impõe barreiras

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O reconhecimento do abandono afetivo como ilícito civil surge de uma ampla discussão na jurisprudência - Adobe Stock
O reconhecimento do abandono afetivo como ilícito civil surge de uma ampla discussão na jurisprudência
Paula Bulka Durães
Por Paula Bulka Durães paula.bulka@viva.com.br

Publicado em 04/12/2025, às 12h16

São Paulo, 04/12/2025 – Quais as consequências da falta de afeto provido pelos pais na vida de uma criança ou de um adolescente? Para Carla*, 28, o abandono emocional que sofreu desde a infância se manifesta, no dia a dia, em crises de ansiedade e na necessidade de acompanhamento terapêutico frequente. 

Aos oito anos, a comunicadora do interior da Paraíba começou a trabalhar no bar da família, a mando do pai, onde foi exposta a violências latentes, como assédio sexual, e chegou a presenciar uma tentativa de homicídio. Em casa, assumiu as tarefas domésticas para ajudar a mãe. 

Enquanto a irmã mais nova cresceu rodeada de afeto e cuidados por parte do pai, Carla sofreu agressões físicas e verbais constantes, que a colocavam para baixo.

“Ele me batia, me falava que eu nunca seria nada na vida. Mais tarde, quando entrei na faculdade, não tinha o que comer em casa e emagreci muito. Quando pedi ajuda, ele disse que era frescura e só o procurava por interesse”, relata.

A história de Carla converge com um tipo de violência sofrido por muitos brasileiros: o chamado abandono afetivo. No fim de outubro, essa conduta, quando praticada contra crianças ou adolescentes, passou a caracterizar ilícito civil - portanto, passível de indenização

A Lei 15.240/2025 alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e trouxe uma punição legal à falta de afeto. Entretanto, os desafios para cumprir a legislação, na prática, continuam. Segundo a psicóloga jurídica Patrícia Barazetti, a Justiça terá dificuldade de provar que existiu uma lacuna na assistência afetiva

Leia também: Crianças e adolescentes estão expostas à violência em plataformas digitais

“A lei é um grande avanço, mas vai exigir uma articulação em rede, que envolva psicólogos, conselheiros tutelares, Ministério Público, professores e membros da sociedade civil que identifiquem o problema e atuem em conjunto. Porém, na minha avaliação, o Judiciário ainda não está preparado para isso”, argumenta.

Judiciário despreparado 

O advogado cível Kevin de Sousa, bolsista no Fellowship Program pela Harvard Law School, explica que o abandono afetivo pode se manifestar de formas distintas, que têm em comum a omissão de um pai ou responsável legal em garantir o suporte emocional necessário para o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente.

“Ela se manifesta, por exemplo, na falta de visitação, convivência familiar, orientação ou apoio emocional. A alienação parental também é um sinal de alerta.” 

Segundo o sócio do escritório Sousa & Rosa Advogados, a dificuldade para garantir a reparação prevista na lei está em comprovar uma ligação de causa e efeito desse abandono na vida da criança.

“Para configurar essa responsabilidade civil, precisa existir um dever legal de assistência afetiva que não é cumprido e tenha consequências na saúde mental e física da criança, configurando o que chamamos de nexo causal”, explica. 

Outra dificuldade, de acordo com a psicóloga jurídica, está em identificar, na criança ou no adolescente, sinais do abandono, que costumam se retrair quando sofrem a violência.

“A criança, por uma questão de formação de aparelho psíquico, não consegue verbalizar as suas dores, então vai manifestar por meio de comportamentos. Claro que não é só o sintoma da criança que vai caracterizar o abandono afetivo, mas é um primeiro sinal de alerta.”

São sinais de alerta, segundo a psicóloga: 

  • Baixo rendimento escolar; 
  • Sintomas ou sinais depressivos, mesmo em crianças pequenas; 
  • Mudanças drásticas no corpo ou na saúde física; 
  • Retração ou timidez excessiva.  

Carla só descobriu depois de adulta, quando teve condições financeiras de começar a terapia, que a relação difícil com o pai poderia se configurar como abandono afetivo, ainda sem consequências legais. “Só agora, depois de anos de violência e de concluir três faculdades, é que consegui cortar relações com ele. Ele chegou certa vez a me dizer que eu não tinha pai, mas eu nunca tive pai mesmo”, desabafa.

Como funciona a reparação? 

O reconhecimento do abandono afetivo como ilícito civil surge de uma ampla discussão na jurisprudência, embasada em princípios constitucionais que deram suporte para a teoria, como explica o advogado da área cível.

“Entre os princípios que sustentam a nova lei está o da dignidade humana, além do melhor interesse e a proteção integral da criança e do adolescente”, detalha.

Ele reforça que, apesar do reconhecimento, o abandono ainda está restrito ao direito civil, e não ao criminal. “O abandono afetivo não é um crime, mas prevê a reparação por danos morais e materiais, passível de uma indenização que será calculada pelo juíz com base na extensão do dano”, esclarece.

O que diz a lei?

De acordo com o ECA, configura conduta ilícita, sujeita a reparação de danos, a ação ou omissão que ofenda o direito fundamental da criança e do adolescente à assistência afetiva, por meio de:

  • Orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais, educacionais e culturais;
  • Solidarização e apoio nos momentos de intenso sofrimento ou de dificuldade; 
  • Presença física quando a criança ou adolescente solicitar de forma espontânea, se possível de ser atendida.  

Segundo a psicóloga, o abandono afetivo ocorre, muitas vezes, quando os pais não conseguem desenvolver a parentalidade, por estarem fixados em conflitos conjugais ou apresentarem feridas narcísicas e imaturidade emocional

“Geralmente os pais se afastam dos filhos porque antes disso existe um conflito conjugal. Então, na maioria dos casos, esses sujeitos não conseguem olhar para aquela criança ou adolescente com um olhar amoroso.”

Carla rejeita os conselhos externos de que precisa perdoar o pai pela negligência e violências sofridas.

“Tem gente que perdoa e fica bem, mas no meu caso, eu não perdoo, não quero ter ele próximo a mim. E Deus vai dizer o que vai acontecer no futuro, não desejo o mal, não quero que ele sofra, mas quero distância até o fim.”

*Nome fictício para proteger a identidade da fonte.

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