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Por Fabiana Holtz
[email protected]São Paulo, 09/07/2025 – A procura por ajuda para se livrar da ludopatia, doença caracterizada pelo vício em apostas e jogos de azar, tem crescido exponencialmente no País de 2023 para cá, junto com a popularização das bets esportivas. O assunto é complexo e levanta um amplo debate sobre o impacto da falta de educação financeira da população, que leva ao endividamento descontrolado, além de efeitos na saúde mental. O tema, inclusive, já é reconhecido pelo Ministério da Saúde como um desafio de saúde pública.
Apenas em 2024, o mercado das bets movimentou R$ 130 bilhões, de acordo com dados do Tribunal de Contas da União (TCU).
Para tratar do vício há grupos de apoio como os Jogadores Anônimos (JA), associação criada em 1993 no Rio de Janeiro. Atualmente, a JA reúne 54 núcleos distribuídos em 18 Estados. O próprio crescimento da associação dá uma dimensão do tamanho do problema: um ano e meio atrás, o número de unidades de apoio era menos da metade.
E essa expansão está diretamente ligada à rapidez e facilidade com que o vício em apostas se estabelece. A começar pelo fato de que tudo está conectado em um único aparelho, o celular. Lá, o jogador tem ao mesmo tempo os aplicativos da plataforma de apostas e o do banco - uma combinação no mínimo perigosa.
Atualmente, o canal de WhatsApp do JA, o Linha de Vida, tem realizado mais de 100 atendimentos por dia. Além do apoio, esse contato tem ajudado a ampliar o alcance do grupo, com a abertura de unidades em cidades onde ainda não estavam presentes. A rede atravessou o Oceano e hoje também atende outros países de língua portuguesa como Portugal, Angola e Moçambique.
Dados recentes do Sistema Único de Saúde (SUS) confirmam esse cenário, com um crescimento significativo no número de atendimentos relacionados a “transtorno do jogo” e “mania de jogos de aposta”. Entre 2018 e 2024, os casos saltaram de 111 para 1.292.
Um dos membros mais antigos do Jogadores Anônimos ouvido pela reportagem observa que jogar a responsabilidade no governo acaba tornando a situação muito fácil para se justificar o vício. “Não tem como mudar o mundo, mas podemos mudar a nós mesmos para não cair nessas armadilhas. A questão envolve ter consciência de que isso é nocivo”, afirma o ex-jogador, sob anonimato.
Importante reforçar que o vício em jogo é considerado pelos especialistas em saúde um transtorno, com mecanismos semelhantes ao do alcoolismo e do tabagismo.
Segundo uma pesquisa da organização Futuros Possíveis em parceria com a Opinion Box, realizada no ano passado, integrantes da geração Z (de 18 e 29 anos) são os mais propensos a tomar empréstimo para continuar apostando, com 45% indicando essa possibilidade. Essa também é a geração que movimenta os maiores valores em apostas, de R$ 201 a R$ 1 mil.
Que a questão está fora de controle não há dúvida, e a falta de informação tem um forte peso para essa realidade. Pesquisa da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) sobre o perfil do investidor brasileiro detectou que aposta online é vista como investimento por 4 milhões de brasileiros.
No ano passado 15% dos brasileiros, o equivalente a 23 milhões de pessoas, fizeram pelo menos uma aposta em plataformas online, e destes, 3 milhões apresentaram alta tendência ao vício, segundo o levantamento da Anbima.
A entidade começou a identificar essa confusão entre aposta e investimento ainda em 2022, ao rodar mais de 10 mil quilômetros pelo país em um ônibus para a pesquisa "Como você investe o seu dindim?" . "Quando chegamos mais ou menos na metade do caminho, em Goiás, os pesquisadores comunicaram que idenficaram essa questão. Foi assim que decidimos investigar melhor o assunto na edição de 2023", conta Marcelo Billi, Head de Sustentabilidade, Inovação e Educação da Anbima.
"São muitas camadas, há perfis bastante distintos entre os apostadores", afirma. Segundo ele, o número de investidores que assume já ter feito aposta online seguiu praticamente estável em 2024 e está dentro da média mundial.
A questão pede atenção, mas ele diz que não vê a proibição como saída. "Podemos ajudar com informação. Mostrando que isso é entretenimento e não uma solução financeira para planejar seu futuro", conclui.
André Minucci, especialista em finanças, concorda que é fundamental que fique claro a diferença entre investimento e especulação. “Apostar não é uma estratégia de investimento; é uma forma de risco que pode levar ao endividamento”, pontua.
Para Minucci, o quadro reforça a necessidade urgente de se trabalhar a educação financeira desde a base, nas escolas.
Oficialmente, as bets atuam no País de acordo com as regras estabelecidas na Lei nº 14.790/2023. A partir dela, operadores privados podem oferecer o serviço, mas é necessária uma autorização do Ministério da Fazenda. Atualmente, 163 plataformas possuem registro e estão aptas a funcionar no Brasil. Esses sites possuem o domínio bet.br e seguem uma série de regras.
Não se pode negar que desde a legalização das apostas de quota fixa em 2018, a falta de barreiras para empresas com sede no exterior atuarem como agentes no Brasil permitiu sua expansão sem a supervisão necessária.
Nesse contexto, o Governo Federal anunciou em dezembro passado a criação do Grupo de Trabalho Interministerial de Saúde Mental, Prevenção e Redução de Danos do Jogo Problemático. Segundo comunicado do ministério, a missão desse grupo é desenvolver estratégias para prevenir, atenuar danos e oferecer suporte a indivíduos e comunidades afetados por práticas de jogo compulsivo ou em situação de vulnerabilidade.
Plataformas ilegais, no entanto, seguem desafiando o bloqueio do governo através de sites alternativos. Em fevereiro, o governo ampliou a ofensiva contra as plataformas ilegais e derrubou 11 mil sites.
Em paralelo, as tentativas para conter o avanço desse fenômeno têm caminhado no Congresso, mas a passos lentos. No final de maio, o projeto de lei que restringe as propagandas de bets nos estádios e a divulgação dessas plataformas por atletas e influenciadores digitais foi aprovado pelo Senado, mas segue estacionado na Câmara dos Deputados.
Para Tiago Godoy, educador financeiro e cofundador da Bem Educação (que presta serviço de educação financeira para escolas), o assunto é complexo, envolve diversos fatores combinados e já se alastrou pelo mundo.
“Não é uma questão exclusiva do Brasil. As propagandas das casas de apostas são agressivas e falta regulamentação. Se trata de um mercado tão forte e complexo que é até difícil falar, por que está todo mundo ganhando dinheiro com isso”, diz.
Em suas propagandas, as plataformas de jogos online falam em diversão com responsabilidade, mas na verdade a questão envolve dependência, superendividamento e a consequente destruição de milhares de famílias.
“Provavelmente, isso só vai mudar quando a atividade se tornar uma questão moralmente inaceitável”, lamenta Godoy.
E tem ainda o fato de envolver o futebol, evento que mexe com a emoção, identidade, times e paixões. A questão é vista quase como uma religião por muitos torcedores, lembra o educador financeiro Godoy.
Além de grupos de apoio como o Jogadores Anônimos, você pode encontrar auxílio profissional gratuíto em serviços como o programa ambulatorial do jogo (PRO-AMJO), oferecido pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e demais hospitais universitários, como o da Unifesp.
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