Estrutura falha e capacitismo ainda travam a vida do trabalhador PcD

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Empregabilidade de PcDs esbarra na falta de investimento em uma cultura mais inclusiva e de conhecimento - Envato
Empregabilidade de PcDs esbarra na falta de investimento em uma cultura mais inclusiva e de conhecimento
Por Fabiana Holtz fabiana.holtz@viva.com.br

Publicado em 29/07/2025, às 08h48 - Atualizado às 10h37

São Paulo, 29/07/2025 – Investir na contratação de pessoas com deficiência (PcDs) e em instalações mais acessíveis ainda enfrenta fortes problemas estruturais no Brasil, mesmo 34 anos após a aprovação da Lei de Cotas, em julho de 1991. A legislação determina que empresas com mais de 100 funcionários reservem de 2% a 5% do seu quadro de funcionários para esse perfil. Esse porcentual varia de acordo com o número total de funcionários da companhia.

E o não cumprimento dessa lei é punido com multa de R$ 3,215 mil por vaga não preenchida, com valor total limitado a R$ 321,5 mil. A rigor, a empresa pode ser autuada a cada 24 horas. A fiscalização é realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e o Ministério Público do Trabalho (MPT).

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Infelizmente, a rotatividade desses trabalhadores ainda é um dos principais desafios nas empresas, segundo o “Radar da Inclusão: mapeando a empregabilidade de Pessoas com Deficiência”.

O mesmo levantamento identificou que 90% desses trabalhadores já enfrentaram situações de capacitismo no ambiente de trabalho. A pesquisa, realizada em parceria da consultoria Talento Incluir, com o Instituto Locomotiva, Pacto Global e iO Diversidade, ouviu 1.230 pessoas com deficiência ou neurodivergência.

Carolina Ignarra, CEO da Talento Incluir
Para Carolina Ignarra, pesquisa confirma que o capacitismo ainda está presente na sociedade. Foto: Arthur Calasans

Embora sintam desconforto, somente 35% deles relataram os episódios às empresas. Para justificar o silêncio, os outros 65% alegaram medo de retaliação ou demissão (38%) e descrença em qualquer mudança (29%). Em resumo, não se sentem em um ambiente seguro.

Para Carolina Ignarra, CEO da Talento Incluir, o desligamento desses profissionais não tem relação com sua capacidade. "A verdadeira inclusão não é sobre preencher uma cota. É sobre reconhecer as pessoas com deficiência como merecedoras das mesmas oportunidades. E é nesse ponto que a Lei de Cotas deixa de ser apenas um instrumento jurídico para se tornar uma ferramenta de transformação cultural. Ela não é o fim; é o começo", diz.

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Barreiras físicas, sociais e financeiras

Apenas contratar para cumprir a Lei mas sem investir em inclusão é um processo oneroso e pouco efetivo, segundo Ignarra. Infelizmente, reconhece a consultora, as empresas perdem talentos e desperdiçam investimentos por não criarem condições para que essas pessoas continuem no emprego. “Sem ações estruturadas e lideranças preparadas, a rotatividade é quase inevitável”, afirma.

Para ter uma dimensão do desafio, em termos globais o número de PcDs é estimado em 1,3 bilhão de pessoas, conforme levantamento da Organização Mundial de Saúde (OMS).

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No Brasil, de acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 14,4 milhões de pessoas classificadas como PcDs, o que representa 7,3% da população. No recorte por gênero, as mulheres somam 8,3 milhões e representam maioria, enquanto a parcela de homens é de 6,1 milhões.

No quesito educação, um sinal de que ainda temos um longo caminho a percorrer para garantir a empregabilidade das pessoas com deficiência é que apenas 7,4% dessa parcela da população completou o ensino superior e somente 26,6% está empregada.

Investir na cultura inclusiva, apontam os especialistas, além de contribuir para um ambiente corporativo mais diverso e aberto a inovações, é no mínimo um diferencial que pode ampliar a base de clientes de qualquer negócio. 

Demanda por vagas

Enquanto as empresas reclamam da dificuldade em contratar, a demanda de pessoas com algum tipo de deficiência por trabalho segue crescendo. Dados da Catho, plataforma de empregos, apontam um aumento considerável no número de PcDs em busca de oportunidades no mercado de trabalho. O número de candidatos que se declararam PcD saltou 79% no primeiro semestre em relação ao mesmo período do ano passado, segundo levantamento da plataforma.
O envio de laudos comprobatórios, que passam por um processo de validação por uma equipe especializada da Catho, cresceu 56% no período.
Também cresce a percepção de que o capacitismo ainda é a grande barreira a se superar. Segundo essa pesquisa, 68% dos profissionais percebem que as contratações de PcDs nas empresas ocorrem, muitas vezes, apenas por cumprimento da legislação. E mais: quase metade (49%) afirmou já ter enfrentado algum tipo de discriminação no ambiente de trabalho.

Campanha para evitar rótulos

Entre as iniciativas que apoiam a causa, o Instituto Jô Clemente (IJC), organização da sociedade civil sem fins lucrativos que é referência em inclusão de pessoas com deficiência intelectual, transtorno do espectro autista (TEA) e doenças raras, lançou em julho a campanha “O talento não tem rótulo. Inclua. Contratar não pode ser um problema. É a solução”.

Além do cumprimento de uma obrigação legal, a entidade defende que a contratação de pessoas com deficiência é uma boa oportunidade para as empresas ganharem em inovação e desenvolvimento.

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Flávio Gonzalez, do IJC, destaca a importância de construir pontes entre trabalhadores PcD e empresas - Foto: Divulgação

O Programa IJC Inclui +, criado pelo instituto, oferece suporte para profissionais e organizações em todas as etapas do processo. Flávio Gonzalez, coordenador de Inclusão Social do IJC, ressalta que a ideia é criar pontes entre esses profissionais e empresas que valorizam a diversidade como um motor para o crescimento e inovação.

O resultado é retenção de talentos: 93% dos profissionais incluídos pelo programa segue trabalhando na empresa que os contratou.

E qual o segredo? Gonzalez recomenda investir no letramento dos seus funcionários é um bom caminho para fortalecer a cultura inclusiva. São pontos que precisam ser repetidos e relembrados, porque novos elementos vão sendo incorporados ao que já se sabia. "Alguns anos atrás, por exemplo, capacitismo era uma palavra que não se conhecia. A flexibilização de critério para seleção é outro ponto importante”, afirma.

Desde 2013, ano em que foi implantado o programa, já foram incluídas no mercado de trabalho mais de 5 mil pessoas com deficiência.

Segundo o instituto, foi observado um crescimento progressivo e orgânico até 2019. Esse avanço foi interrompido pela pandemia de Covid-19, mas a trajetória ascendente foi recuperada em 2022. A média de contratações dos últimos anos tem sido em torno de 500 profissionais, conta Gonzalez. A meta é atingir 760 contratações em 2025 e quebrar a barreira de 1.000 vagas preenchidas em 2026.

Entre as empresas que mais contratam via esse modelo, ressalta o IJC, estão diversas indústrias, laboratórios e prestadoras de serviço, com destaque para o setor de varejo, sobretudo do ramo de alimentação e supermercados. Algumas, aponta Gonzalez, têm o programa como um diferencial de credibilidade de marca.

O silêncio das libras

De acordo com Luciano Esposto, sócio da Libraria, empresa especializada em soluções de acessibilidade em libras, o trabalho com surdos é mais específico por se tratar de um PcD silencioso. A principal ferramenta para estimular a inclusão desse público, destaca ele, é a informação. “Na rua, você consegue perceber a presença de um cego, um cadeirante, a pessoa com nanismo. O surdo, porém, está do seu lado e você não sabe se dá conta”, diz.

O Brasil tem aproximadamente 3 milhões de surdos que usam libras, mas são poucos os exemplos de inclusão no mercado de trabalho, destaca o representante da Libraria. Ele cita a empresa de RH Egualité, especializada na seleção de surdos para vagas, e a indústria Bosch, que tem uma linha de produção com 200 surdos.

Esposto, que ministra workshops para empresas, busca desmistificar esse universo. “Tem surgido diversas ferramentas de Inteligência Artificial que tornaram a acessibilidade mais viável, mas a formação de profissionais em libras para surdos, por exemplo, ainda enfrenta sérios problemas no País”, explica. Segundo ele, mais de 90% das universidades hoje não estão conseguindo formar intérpretes de libras.

Gonzalez, do IJC, concorda que o obstáculo número um para a inclusão ainda é o capacitismo, a barreira atitudinal. “Apesar da lei, ainda é muito arraigada a crença de que a pessoa não vai conseguir, de que é muito difícil. Isso acaba bloqueando a participação dessas pessoas nos processos seletivos”, lamenta.

Caminhos para a acessibilidade

No âmbito do poder público, na cidade de São Paulo a prefeitura, por meio da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência (SMPED), oferece dois selos que reconhecem ambientes acessíveis: o Selo de Acessibilidade Arquitetônica, que respalda edificações que garantem acesso seguro e autônomo a pessoas com deficiência; e o Selo de Acessibilidade Digital, certificação para sites com navegação inclusiva. As solicitações são gratuitas e podem ser feitas pelo Portal SP156.

A Secretaria também oferece cursos gratuitos voltados a profissionais de arquitetura, engenharia, TI e comunicação, com foco nas normas técnicas e boas práticas de acessibilidade. São quatro formações online, com 100 vagas por edição, divulgadas nas redes sociais da Secretaria (@smpedsp) e no site da prefeitura de São Paulo.

Há ainda o curso Conhecer Para Incluir, que tem como objetivo sensibilizar e capacitar servidores públicos, profissionais de diversas áreas e a sociedade sobre os direitos, potencialidades e realidades das pessoas com deficiência. A formação aborda conceitos sobre acessibilidade, inclusão, diversidade e respeito às diferenças.

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