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São Paulo, 29/07/2025 – Investir na contratação de pessoas com deficiência (PcDs) e em instalações mais acessíveis ainda enfrenta fortes problemas estruturais no Brasil, mesmo 34 anos após a aprovação da Lei de Cotas, em julho de 1991. A legislação determina que empresas com mais de 100 funcionários reservem de 2% a 5% do seu quadro de funcionários para esse perfil. Esse porcentual varia de acordo com o número total de funcionários da companhia.
E o não cumprimento dessa lei é punido com multa de R$ 3,215 mil por vaga não preenchida, com valor total limitado a R$ 321,5 mil. A rigor, a empresa pode ser autuada a cada 24 horas. A fiscalização é realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e o Ministério Público do Trabalho (MPT).
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Infelizmente, a rotatividade desses trabalhadores ainda é um dos principais desafios nas empresas, segundo o “Radar da Inclusão: mapeando a empregabilidade de Pessoas com Deficiência”.
O mesmo levantamento identificou que 90% desses trabalhadores já enfrentaram situações de capacitismo no ambiente de trabalho. A pesquisa, realizada em parceria da consultoria Talento Incluir, com o Instituto Locomotiva, Pacto Global e iO Diversidade, ouviu 1.230 pessoas com deficiência ou neurodivergência.
Embora sintam desconforto, somente 35% deles relataram os episódios às empresas. Para justificar o silêncio, os outros 65% alegaram medo de retaliação ou demissão (38%) e descrença em qualquer mudança (29%). Em resumo, não se sentem em um ambiente seguro.
Para Carolina Ignarra, CEO da Talento Incluir, o desligamento desses profissionais não tem relação com sua capacidade. "A verdadeira inclusão não é sobre preencher uma cota. É sobre reconhecer as pessoas com deficiência como merecedoras das mesmas oportunidades. E é nesse ponto que a Lei de Cotas deixa de ser apenas um instrumento jurídico para se tornar uma ferramenta de transformação cultural. Ela não é o fim; é o começo", diz.
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Apenas contratar para cumprir a Lei mas sem investir em inclusão é um processo oneroso e pouco efetivo, segundo Ignarra. Infelizmente, reconhece a consultora, as empresas perdem talentos e desperdiçam investimentos por não criarem condições para que essas pessoas continuem no emprego. “Sem ações estruturadas e lideranças preparadas, a rotatividade é quase inevitável”, afirma.
Para ter uma dimensão do desafio, em termos globais o número de PcDs é estimado em 1,3 bilhão de pessoas, conforme levantamento da Organização Mundial de Saúde (OMS).
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No Brasil, de acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 14,4 milhões de pessoas classificadas como PcDs, o que representa 7,3% da população. No recorte por gênero, as mulheres somam 8,3 milhões e representam maioria, enquanto a parcela de homens é de 6,1 milhões.
No quesito educação, um sinal de que ainda temos um longo caminho a percorrer para garantir a empregabilidade das pessoas com deficiência é que apenas 7,4% dessa parcela da população completou o ensino superior e somente 26,6% está empregada.
Investir na cultura inclusiva, apontam os especialistas, além de contribuir para um ambiente corporativo mais diverso e aberto a inovações, é no mínimo um diferencial que pode ampliar a base de clientes de qualquer negócio.
Entre as iniciativas que apoiam a causa, o Instituto Jô Clemente (IJC), organização da sociedade civil sem fins lucrativos que é referência em inclusão de pessoas com deficiência intelectual, transtorno do espectro autista (TEA) e doenças raras, lançou em julho a campanha “O talento não tem rótulo. Inclua. Contratar não pode ser um problema. É a solução”.
Além do cumprimento de uma obrigação legal, a entidade defende que a contratação de pessoas com deficiência é uma boa oportunidade para as empresas ganharem em inovação e desenvolvimento.
O Programa IJC Inclui +, criado pelo instituto, oferece suporte para profissionais e organizações em todas as etapas do processo. Flávio Gonzalez, coordenador de Inclusão Social do IJC, ressalta que a ideia é criar pontes entre esses profissionais e empresas que valorizam a diversidade como um motor para o crescimento e inovação.
O resultado é retenção de talentos: 93% dos profissionais incluídos pelo programa segue trabalhando na empresa que os contratou.
E qual o segredo? Gonzalez recomenda investir no letramento dos seus funcionários é um bom caminho para fortalecer a cultura inclusiva. São pontos que precisam ser repetidos e relembrados, porque novos elementos vão sendo incorporados ao que já se sabia. "Alguns anos atrás, por exemplo, capacitismo era uma palavra que não se conhecia. A flexibilização de critério para seleção é outro ponto importante”, afirma.
Desde 2013, ano em que foi implantado o programa, já foram incluídas no mercado de trabalho mais de 5 mil pessoas com deficiência.
Segundo o instituto, foi observado um crescimento progressivo e orgânico até 2019. Esse avanço foi interrompido pela pandemia de Covid-19, mas a trajetória ascendente foi recuperada em 2022. A média de contratações dos últimos anos tem sido em torno de 500 profissionais, conta Gonzalez. A meta é atingir 760 contratações em 2025 e quebrar a barreira de 1.000 vagas preenchidas em 2026.
Entre as empresas que mais contratam via esse modelo, ressalta o IJC, estão diversas indústrias, laboratórios e prestadoras de serviço, com destaque para o setor de varejo, sobretudo do ramo de alimentação e supermercados. Algumas, aponta Gonzalez, têm o programa como um diferencial de credibilidade de marca.
De acordo com Luciano Esposto, sócio da Libraria, empresa especializada em soluções de acessibilidade em libras, o trabalho com surdos é mais específico por se tratar de um PcD silencioso. A principal ferramenta para estimular a inclusão desse público, destaca ele, é a informação. “Na rua, você consegue perceber a presença de um cego, um cadeirante, a pessoa com nanismo. O surdo, porém, está do seu lado e você não sabe se dá conta”, diz.
O Brasil tem aproximadamente 3 milhões de surdos que usam libras, mas são poucos os exemplos de inclusão no mercado de trabalho, destaca o representante da Libraria. Ele cita a empresa de RH Egualité, especializada na seleção de surdos para vagas, e a indústria Bosch, que tem uma linha de produção com 200 surdos.
Esposto, que ministra workshops para empresas, busca desmistificar esse universo. “Tem surgido diversas ferramentas de Inteligência Artificial que tornaram a acessibilidade mais viável, mas a formação de profissionais em libras para surdos, por exemplo, ainda enfrenta sérios problemas no País”, explica. Segundo ele, mais de 90% das universidades hoje não estão conseguindo formar intérpretes de libras.
Gonzalez, do IJC, concorda que o obstáculo número um para a inclusão ainda é o capacitismo, a barreira atitudinal. “Apesar da lei, ainda é muito arraigada a crença de que a pessoa não vai conseguir, de que é muito difícil. Isso acaba bloqueando a participação dessas pessoas nos processos seletivos”, lamenta.
No âmbito do poder público, na cidade de São Paulo a prefeitura, por meio da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência (SMPED), oferece dois selos que reconhecem ambientes acessíveis: o Selo de Acessibilidade Arquitetônica, que respalda edificações que garantem acesso seguro e autônomo a pessoas com deficiência; e o Selo de Acessibilidade Digital, certificação para sites com navegação inclusiva. As solicitações são gratuitas e podem ser feitas pelo Portal SP156.
A Secretaria também oferece cursos gratuitos voltados a profissionais de arquitetura, engenharia, TI e comunicação, com foco nas normas técnicas e boas práticas de acessibilidade. São quatro formações online, com 100 vagas por edição, divulgadas nas redes sociais da Secretaria (@smpedsp) e no site da prefeitura de São Paulo.
Há ainda o curso Conhecer Para Incluir, que tem como objetivo sensibilizar e capacitar servidores públicos, profissionais de diversas áreas e a sociedade sobre os direitos, potencialidades e realidades das pessoas com deficiência. A formação aborda conceitos sobre acessibilidade, inclusão, diversidade e respeito às diferenças.
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