Por que os casos de sífilis dispararam entre pessoas com mais de 60 anos?
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21/12/2025 | 12h00
São Paulo, 21/12/2025 - Enquanto campanhas de prevenção a infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) focam majoritariamente no público jovem e em doenças focais como a Aids, outras infecções como a sífilis avançam entre os idosos.
Dados coletados do Ministério da Saúde (DataSUS) via Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) pelo VIVA revelam um cenário alarmante. Entre 2014 e 2023, o número de casos de sífilis adquirida em pessoas com mais de 60 anos saltou de 4.255 para 21.613. Esse aumento de 407,94% supera até mesmo o crescimento registrado entre os jovens (menores de 20 anos), que foi de 362,35% no mesmo período.
O ano de 2023 foi o período que mais apresentou aumento nos casos de sífilis na série histórica. Em 2024, a doença teve uma queda, somando 9.560 casos entre pessoas com 40 anos até acima dos 80 anos. Apesar da diminuição dos casos no último ano, ainda demonstra um crescimento de 124,67%, quando comparado a 2014.
O que é sífilis?
O médico geriatra e doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), com atuação nas áreas de sexualidade e envelhecimento, Milton Crenitte, explica que a sífilis é uma doença infecciosa, causada por uma bactéria. A principal forma de contaminação é pela relação sexual, contudo, ela também pode ser transmitida via contato com sangue de uma pessoa contaminada.
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Ele explica que a infecção tem três fases:
- Sífilis primária: é a primeira forma de manifestação da sífilis que geralmente vai se manifestar através de uma úlcera genital, que pode aparecer no pênis, vagina, entre outras partes. “Muitas vezes, se não tratada, ela some, mas não quer dizer que essa pessoa não está mais com sífilis. Ela pode ficar assintomática”, explica Crenitte.
- Sífilis secundária: ocorre quando não há tratamento e acontece um acúmulo da bactéria no sangue que vai de manifestar na pele através de manchas vermelhas na palma das mãos, em outras partes do corpo. Se não tratada nesse nível, ela também pode sumir fisicamente, mas continua presente no corpo;
- Sífilis terciária: fase que ocorre quando a sífilis não tratada levará a um problema cerebral, como a demência.
De toda a forma, a doença é tratável por meio de antibióticos a serem administrados conforme a fase da doença. Contudo, quando o sistema cerebral já foi afetado, será possível tratar a bactéria dentro do corpo, mas não alterar o quadro neurológico mais grave.
Razões
O que explica um aumento tão expressivo justamente na população idosa? Especialistas apontam para uma "tempestade perfeita" composta por longevidade sexual, falta de educação preventiva e tabus médicos.
Para o infectologista, chefe do departamento de infectologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Francisco Hideo Aoki, a medicina proporcionou uma extensão da vida sexual ativa — impulsionada por medicamentos para disfunção erétil —, mas falhou em acompanhar esse avanço com educação preventiva.
O desuso do preservativo é central nesse debate. "Pessoas idosas que não têm mais a possibilidade de engravidar não vão pensar na camisinha", explica Milton Crenitte, especialista em geriatria e sexualidade. Segundo ele, essa geração pode muitas vezes associar o preservativo exclusivamente à contracepção, ignorando seu papel como barreira contra infecções.
“Camisinha é um método excelente, 99.9% quase 100% de eficácia, se usar. Mas se ela ficar na carteira, ficar na gaveta, não é um método bom de prevenção”, ressalta o geriatra.
Frente a esse contexto, o especialista em sexualidade e envelhecimento reforça que é preciso pensar em outras estratégias de prevenção. “Um dos métodos mais modernos hoje é a prevenção combinada em que existe um cardápio de possibilidades de prevenção que vão ser diferentes para cada pessoa, conforme seu histórico e tipos de relação”, explica.
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Tabu no consultório
O diagnóstico tardio é outro fator crítico. Muitas vezes, a sífilis é confundida com problemas comuns da idade, e o preconceito pode impedir a investigação correta.
O médico especialista pela Sociedade Brasileira de Coloproctologia, Danilo Munhóz, relata que é comum idosos chegarem ao consultório com lesões anais acreditando se tratar de hemorroidas ou fissuras. "A ferida da sífilis pode ser discreta e muitas vezes pouco dolorosa, coisas que facilmente entram no mesmo ‘bolo’ de sintomas anorretais comuns", alerta o médico.
Munhóz destaca que existe uma barreira dupla: o médico muitas vezes não espera que o idoso tenha vida sexual ativa e, quando espera, assume compulsoriamente a heterossexualidade do paciente. "Se o médico não pergunta de forma neutra e acolhedora, o assunto não aparece", afirma, ressaltando que isso deixa passar despercebidos casos em idosos LGBTQIA+, um grupo raramente representado em campanhas de saúde e desconsiderados em consultas de rotina.
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Aoki, da Unicamp, acrescenta dizendo que hoje todos os profissionais têm informações e formações suficientemente adequadas que permitem que as orientações de realização de sexo seguro sejam feitas "a cada atendimento e a cada paciente”.
Ele adiciona, porém, que estímulos constantes, como os que existem para outras patologias e infecções como por exemplo “pense TB” — a ver com pensar sempre na possibilidade de tuberculose dentre os diagnósticos diferenciais — sejam aplicado também para IST’s. Isto seria importante para que profissionais sempre considerem esse tipo de infecções e, consequentemente, as pessoas sejam estimuladas a fazerem pelo menos uma vez por ano a sorologia para detecção de HIV, hepatite C, hepatite B e sífilis.
“Um ‘pense sífilis', ou 'pense ISTs e DSTs’ [como ideia de campanha], já que muitas pessoas ainda não assimilaram a mudança da sigla feita nos últimos anos”, sugere o infectologista.
Notificação
É importante notar que parte desse aumento estatístico se deve à melhoria no sistema de vigilância. Segundo Aoki, à obrigatoriedade da notificação de todos os casos de sífilis adquirida (antes restrita a gestantes e casos de infecção de mãe para filho). A distribuição massiva de testes rápidos pelo SUS permitiram "enxergar" melhor a doença e também pode ter influenciado na diminuição nos casos em 2024.
Contudo, os especialistas concordam: a melhoria na notificação não anula o fato de que há uma mudança real e drástica no comportamento de risco e na circulação da bactéria nos últimos anos.
Homens lideram, mas mulheres preocupam
A análise por sexo mostra que a epidemia atinge a todos, mas com dinâmicas diferentes:
- Homens: historicamente representam cerca de 60% das notificações. O aumento de 2014 a 2023 foi de 333,9%;
- Mulheres: registraram um crescimento de 318,5% no mesmo período.
Embora os números absolutos sejam maiores entre os homens, o cenário feminino revela uma vulnerabilidade específica ligada a questões culturais. Milton Crenitte observa que o maior aumento de casos de Aids, por exemplo, ocorre em mulheres heterossexuais idosas.
"Muitas pessoas enxergam na monogamia uma forma de prevenção", diz Crenitte, alertando que confiar na fidelidade do parceiro não é uma estratégia de saúde eficaz, pois muitas dessas mulheres são infectadas dentro de casamentos de longa data.
Segundo os especialistas, outro ponto de atenção é a menopausa. Muitas vezes, pela previsão de que não há mais risco de gravidez, muitos casais deixam a camisinha de lado e não usam outro tipo de prevenção por não levar em conta as infecções sexualmente transmissíveis.
É preciso falar sobre sexo longevo
Para conter essa curva ascendente, a solução passa por romper o silêncio. "Falar sobre o assunto com todas as letras, de forma totalmente aberta", recomenda Aoki.
A saúde pública precisa incluir pessoas mais velhas nas estratégias de prevenção combinada, que vão além da camisinha e incluem testagem regular, além de levar em conta a diversidade presente neste grupo. Como resume o coloproctologista Danilo Munhóz: "Idosos LGBTQIA+ existem, têm vida sexual, e precisam de mensagens diretas sobre prevenção. A saúde pública ganha muito quando comunica de forma inclusiva".
Crenitte adiciona, porém, que políticas públicas voltadas para essa população em relação à vida sexual saudável precisam ser pautadas por quem faz parte desse público. “Pensar em estratégias de multiplicação, de conversa com públicos diversos não deve ser feito por nós jovens que não estamos nessa fase. Vamos dialogar com os idosos, chamá-los para falar quais são suas dores, quais são as suas dúvidas, como que a gente pode alinhar essa comunicação e fazer políticas voltadas para eles”, conclui.
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