Após anos de disputas entre consumidores e construtoras, foi aprovada, em 2018, a lei dos distratos (13.786), com a intenção de apresentar regras claras para esses casos. Entre as principais medidas, ficou definida multa de até 50% sobre o valor pago se alguma das partes desistir do negócio. Até então, os tribunais aplicavam entre 10% e 25%, conforme avaliação de cada juiz.
A lei, portanto, serviu para aumentar as penas e inibir as desistências dos negócios. Com isso, os distratos chegaram a quase 50% das vendas brutas no ápice da crise imobiliária, nos idos de 2015 e 2016, mas hoje são menos de 10%, de acordo com monitoramento da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).
Entretanto, uma decisão recente do STJ reduziu a multa novamente para até 25%. Além disso, passou a determinar que a construtora deve fazer a devolução dos valores de forma imediata, e não mais só após o término da obra, conforme estabelecido na lei dos distratos.
Tais mudanças não foram unânimes, tendo três votos favoráveis e dois contrários, conforme acórdão assinado pela 3ª Turma do STJ no início de setembro. O caso foi relatado pela ministra Nancy Andrighi.
O que vale mais, distrato ou Código do Consumidor?
A maioria dos magistrados avaliou que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) deve prevalecer sobre a Lei dos Distratos porque ele aborda todos os contratos em que há relação de consumo, sendo, portanto, mais amplo que a legislação específica do mercado imobiliário.
A partir daí, os ministros reduziram a multa com base na interpretação do CDC que veda perdas substanciais dos valores pagos pelos consumidores e um eventual enriquecimento sem causa por parte das empresas. "Esta Corte extraiu a conclusão de que é abusiva a perda substancial dos valores pagos na hipótese de resolução do contrato de compra e venda de imóvel por culpa do consumidor, não podendo a retenção ultrapassar 25% dos valores pagos", descreveu a relatora.
O caso julgado foi um recurso especial de um distrato realizado após a promulgação da nova lei. Mesmo assim, prevaleceu a visão de que o CDC fala mais alto. Ao definir que a lei dos distratos não se aplica nas relações de consumo, os ministros também invocaram a Súmula 543, do STJ, segundo a qual deve ocorrer a imediata restituição dos valores pagos.
Interpretação dos casos
O acórdão da 3ª Turma não representa uma posição consolidada do STJ, nem tem poder vinculante. Isso quer dizer que os juízes de primeira instância não têm a obrigação de segui-lo. Mesmo assim, o acórdão dá subsídios para a interpretação dos casos de maneira diferente da prevista na lei dos distratos. Ou seja: as regras voltaram a ficar incertas, alertaram os advogados.
"Na primeira instância, o juiz pode decidir com base na lei dos distratos ou na súmula do STJ, o que mandar a sua consciência. A grande maioria segue a lei, mas essa nova decisão traz muita insegurança e falta de previsibilidade", disse o advogado Olivar Vitale, sócio do escritório VBD, que atende construtoras, e membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim).
Do ponto de vista do consumidor que optou por desfazer o negócio, a decisão do STJ representou uma vitória significativa, pois abriu espaço para multas menores e a restituição imediata dos valores. "Essa decisão deu ao juiz o direito de modular o valor da multa se entender que está abusiva, a fim de trazer maior equilíbrio", afirmou o advogado Marcelo Tapai, especialista em direito imobiliário e defesa do consumidor.
Tapai defende que a construtora não pode ficar com valores substanciais sem uma contraprestação. “Ao comprar o imóvel na planta, é como se o comprador emprestasse o dinheiro para a empresa fazer a construção. O comprador não chegou a usufruir do imóvel. Se tem o distrato, o dinheiro tem que ser devolvido para", enfatizou.
"Eu acredito que a partir de agora vamos ver mais judicialização", acrescentou o sócio do escritório Amatuzzi Advogados, Bruno Amatuzzi, especialista no setor e representante das empresas.
"Os adquirentes de imóveis ganharam uma força para contestação que não tinham antes".
Para as empresas de construção, o distrato é ruim porque o dinheiro recebido com a venda do imóvel na planta é usado na construção. Se tiverem que devolver os valores aos adquirentes, podem sofrer com falta de recursos ao longo da obra.
A multa mais alta inibia esses casos, mas, agora, as cláusulas contratuais com retenções superiores a 25% ficarão sujeitas à nulidade. "Se a empresa devolver o dinheiro antes do fim da obra, vai ter o risco do prédio não ser terminado. É um problema grave que fez empresas quebrarem no passado", ressaltou Vitale.