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Por Fabiana Holtz e Bianca Bibiano
redacao@viva.com.brAtenção: Esta reportagem aborda o tema da dependência em apostas, incluindo aspectos econômicos, sociais e de saúde. Caso você esteja enfrentando dificuldades relacionadas ao jogo ou conheça alguém nessa situação, busque ajuda. O Viva preparou uma série de reportagens, também com indicações de instituições que oferecem esse suporte gratuitamente e caminhos para identificar o problema.
São Paulo, 10/10/2025 – O impacto devastador na saúde mental e financeira de milhares de brasileiros com dependência em apostas online, as populares bets, levanta dúvidas atualmente sobre a capacidade do nosso sistema de saúde em atender a crescente demanda por tratamento. Especialistas entrevistados pelo Viva alertam que esse tipo de vício já é um problema de saúde pública nacional, embora ainda não tenha uma abordagem amplamente difundida.
Segundo o terceiro Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD III), publicado este ano pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em parceria com a Ipsos, 32,1% das pessoas que realizam algum tipo de aposta no País utilizam os sistemas de apostas online, com uma porcentagem significativa relatando comportamentos de dependência.
Essa situação crítica atinge diretamente o orçamento familiar. Estudo recente da Worldpanel by Numerator sobre o comportamento dos consumidores (Consumer Insights) revela que as apostas já consomem 13% do orçamento alimentar das famílias brasileiras. Segundo a pesquisa, a prática é mais comum entre as classes C,D e E.
Apesar de ter se popularizado nos últimos anos, o transtorno conhecido como ludopatia, enfrenta resistência da sociedade em ser reconhecido como doença. “Infelizmente, não estamos preparados. A abertura para o funcionamento das plataformas ocorreu sem que as conversas necessárias fossem realizadas e sem pensar nas consequências”, afirma Rodrigo Machado, psiquiatra colaborador e pesquisador do Programa Ambulatorial do Jogo (Pro-AMJO), do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
Ele afirma que as equipes do Sistema Único de Saúde (SUS) ainda carecem de qualificação necessária para enfrentar o problema, que tem crescido a cada dia. "Existe uma demanda reprimida para esse atendimento e o número de funcionários qualificados que temos atualmente não é suficiente para dar conta".
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A opinião é compartilhada por Rodrigo Pio, psiquiatra especialista em adições pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e colaborador do caderno sobre jogos e apostas da pesquisa LENAD III. "É algo novo, inclusive para os profissionais de saúde. Não há uma preparação para lidar com esse problema. Ao mesmo tempo que também não existem muitos serviços preparados para receber a pessoa que precisa de ajuda".
"As apostas online não são mais uma tendência de risco, são um problema de saúde pública. Antes, o tema era marginalizado, poucas pessoas apostavam, hoje se tornou muito comum. Existe uma necessidade de preparar o serviço de saúde para atender essa população."
Ambos os especialistas dizem que a busca por tratamento precisa partir da pessoa com dependência, que em geral é a última a reconhecer o problema. A dificuldade é semelhante à vivenciada por quem tem vício em álcool ou drogas. Nesse caso, o olhar atento e a escuta de um amigo ou familiar se mostra essencial, como pontua Machado.
"Dificilmente a pessoa navegando sozinha consegue obter um resultado positivo do tratamento. O suporte da família é fundamental nesse início do tratamento. Muitos nos procuram após uma conversa com alguma familiar ou amigo."
Machado trata de dependências no Pro-AMJO, que funciona no Hospital das Clínicas de São Paulo, desde 2017 e revela que a faixa etária que predomina no ambulatório está entre 30 a 40 anos. Esse perfil, porém, está se tornando cada vez mais jovem.
“Temos observado um ciclo de adoecimento em que as consequências de ruína financeira chegam até mais rápido, mas podemos dizer que esse tempo é muito relativo e individual. Principalmente, porque depende muito da situação econômica de cada um”, acrescenta, ao comentar sobre o impacto do vício na saúde financeira de seus pacientes.
No caso do público com mais de 50 anos, o psiquiatra conta que em geral são aposentados e muitos chegam com um grande comprometimento da renda. “Tem histórias parecidas de grande endividamento, busca por agiotas e mentiras”.
E muitos ainda enfrentam um desafio duplo, a recusa da família em entender que a compulsão é uma doença.
Um leitor do Viva, de 60 anos, que pediu anonimato, contou sua batalha contra o vício e a falta de apoio dos parentes. O salário deste mês já foi inteiro para o pagamento de dívidas de jogo, segundo ele.
Ao enfrentar problemas no trabalho e com os filhos em casa, eu acabei me viciando no jogo do Tigrinho. Perdi meu crédito, minha dignidade e estou perdendo minha família, que não acredita que isso é um doença. Eles acham que isso vai sumir de uma hora para outra."
Atualmente, esse leitor diz que se trata com psiquiatra e psicólogo, e toma remédios para controle da ansiedade.
"A compulsão por jogar não escolhe classe social e a família é fundamental nessa jornada”, diz o psiquiatra da Pro-AMJO. Ele conta que já atendeu um rico empresário que acumulou R$ 10 milhões em gastos com jogo de azar, dilapidou parte do seu patrimônio, mas não se afundou em dívidas. Ele decidiu procurar ajuda após contar o que estava acontecendo para a esposa e ela lhe aconselhar a buscar tratamento.
Essa mudança de perfil também é observada por profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), vinculados ao SUS. Segundo o psiquiatra Rodrigo Pio, as pessoas com dependência em apostas expõem um perfil diferente de pacientes com dependência química que chegam à instituição.
Os CAPS AD, que atendem pessoas com dependência química, estavam acostumados a uma população de baixa renda, mais vulnerável e exposta principalmente a uso de crack e álcool. Agora, lidam com um perfil diferente, com melhor condição financeira, acesso à internet e celular. "São pessoas que estão jogando e perdendo o dinheiro deles e da família, muitas vezes acumulado durante anos".
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De acordo com o caderno especial sobre apostas do LENAD III, a modalidade de apostas em bets é a que mais cresce no Brasil, atrás apenas da loteria.
Os números revelam o tamanho do problema que atinge em grande parte a população de baixa renda e o governo federal tem tomado medidas para conseguir conter esse movimento. Desde janeiro deste ano, as apostas online já não podem ser pagas com cartão de crédito. E em 1º de outubro, cumprindo decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) ainda do ano passado, a Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda publicou uma instrução normativa determinando que os operadores de bets impeçam o cadastro ou bloqueiem o uso dos sistemas por beneficiários do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Segundo Machado, o perfil do jogador começou a mudar e se tornou mais tecnológico a partir de 2018, quando houve a legalização das casas de apostas. Hoje, o jogador digital tem acesso ao jogo a qualquer momento, que está instalado no seu celular e as apostas passaram a incorporar fenômenos que estão muito atrelados a mecanismos que favorecem compulsão.
"Em outras palavras, o espaço entre o ato de apostar e o resultado final foi encurtado, e isso acaba hiperestimulando o cérebro, em especial as áreas de recompensa, possibilitando o estabelecimento do vício de forma rápida”, explica o psiquiatra.
Além do problema financeiro, a dependência em apostas também expõe a pessoa a riscos de saúde. "A ideação suicída é identificada entre 30% a 50% dos jogadores, por isso a abordagem precisa ser multidisciplinar e com apoio da família e amigos", pontua.
O profissional reforça dados do LENAD III, segundo o qual 7,3% da população tem o perfil de ‘jogador problema’, caracterizado por uma relação mais problemática com jogos de azar e forte potencial de se viciar. Outro 1% da população pode ser classificada com transtorno do jogo, acrescenta.
Para Rodrigo Pio, o aumento desse transtorno está ligado diretamente ao acesso e estímulo crescente das casas de aposta no Brasil, intensificada desde a legalização das bets, ainda no governo de Michel Temer. "Esse sistema foi entrando na nossa cultura pouco a pouco, quem tinha casas de aposta viu que dava muito dinheiro", pontua.
Ao incorporar elementos de gamificação em suas telas, as plataformas de apostas se tornam ainda mais atraentes, principalmente para os mais jovens, acostumados ao visual dos jogos online, explica Machado.
“No nosso ambulatório, vemos cada vez indivíduos mais jovens, predominantemente do sexo masculino. Mas essa distância entre homens e mulheres também está diminuindo com o tempo”.
Nesse sentido, o médico Rodrigo Pio explica que os adolescentes são o grupo mais vulnerável. "Eles têm muito mais prejuízo do que adultos com desenvolvimento cerebral já formado, pois não têm toda a maturação cerebral pronta, que termina por volta dos 25 anos. Eles são mais impulsivos e também têm problemas secundários emocionais, que podem levar à ansiedade e depressão", alerta.
Assim como Machado, ele destaca que o mecanismo das plataformas de apostas é feito para manter a sensação de que a pessoa nunca está perdendo, quando na verdade está. "Elas criam distorções cognitivas oferecendo lances bônus, jogas extras, cashback, lances sem risco, créditos extras e uma série de outros mecanismos que facilitam crenças não reais, que fazem o jogador acreditar num ganho maior ou risco menor".
Criam também a ilusão do chamado jogo responsável, critiado pelo especialista. "Jogo responsável é uma grande ilusão, uma ferramenta que a sociedade encontrou para dizer que está fazendo algo a respeito da dependência. É fato que a maioria das pessoas que querem apostar podem parar após perder, mas existe uma parcela, que não é pouca, que não vai conseguir parar. É um transtorno comportamental, não existe racionalidade", explica Pio.
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