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São Paulo, 27/09/2025 – Entrar no mundo das apostas online (as populares bets) pode parecer um simples passa tempo, mera recreação, mas a dependência gerada pelo seu uso é comparada por especialistas em saúde ao vício em álcool e drogas. Os mecanismos fisiológicos são basicamente os mesmos. Infelizmente a questão atinge atualmente todas as faixas etárias, com predominância nos mais jovens, entre 20 e 35 anos.
O Ministério da Saúde tem alertado sobre os sérios impactos do transtorno do jogo na saúde mental, especialmente entre os mais jovens, mas a luta parece estar apenas no início. A situação levou inclusive o Superior Tribunal Federal (STF) a vetar no final do ano passado o uso de recursos de programas sociais, como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC), em apostas online. Entre outros freios já impostos pelo governo, desde janeiro deste ano as apostas online também não podem ser pagas com cartão de crédito.
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De olho no crescente endividamento da população por conta da insistente onipresença das bets nas rádios, TVs e jornais, o Procon-SP e a OAB SP lançaram em setembro uma cartilha que busca conscientizar o público sobre os direitos do consumidor em jogos e apostas esportivas. Se você tem um caso de ludopatia (doença caracterizada pelo vício em apostas e jogos de azar) em sua família, saiba que a Lei Federal nº 14.790/2023 equipara os apostadores a consumidores, garantindo a esse público todos os direitos previstos no Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
A cartilha também esclarece que até intermediários podem ser punidos. O objetivo, segundo Maria Inês Dolci, advogada da Comissão de Direito do Consumidor da OAB-SP, não é punir, mas capacitar.
Entre os homens, que são maioria nesse grupo dos que buscam auxílio, a reportagem do Viva conversou com três membros do Jogadores Anônimos (JA), associação que surgiu no Rio de Janeiro em 1993 e hoje atende casos pelo Brasil inteiro e tem chegado a outros países de língua portuguesa. O bate papo nos revela como essa compulsão por jogar também se espalhou entre o público 50+.
Felipe*, 59 anos, aposentado como servidor público, está sem jogar desde 2017. Ele tinha dificuldade de falar sobre o assunto, que considera uma doença progressiva e silenciosa, e vê com tristeza a situação se agravar entre os mais jovens. “Sou membro voluntário no JA aqui no Rio e faço palestras em empresas e não sou da turma dos jogos digitais. Fui viciado em máquinas de caça níquel, bingo e jogo do bicho. Aos poucos fui perdendo o controle da minha vida financeira, usei limite do cheque especial e tirei dinheiro da empresa (duas lojas) que tinha em sociedade com o meu irmão. Usei as economias até do meu pai de 86 anos e tudo isso sem a família saber”, conta.
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Segundo ele, o endividamento se alastra muito rapidamente, entre seis meses a um ano. “Você vai entrando em um buraco profundo, não quer mais ver os amigos, perde a alegria, vai ficando doente e se torna um mentiroso manipulador”, conta, ao afirmar com convicção que vivemos uma pandemia.
A busca por ajuda é apenas um termômetro do quanto essa compulsão por jogar está ganhando relevância. Segundo ele, um ano e meio atrás o JA atuava com 29 grupos presenciais no Brasil. Hoje já são 70 grupos. “Em nossas reuniões recomendamos cinco aplicativos que podem bloquear essas casas de apostas no celular, sendo três deles gratuitos. A estratégia é semelhante ao dos alcoólicos anônimos: evitar a primeira aposta (gole). Temos 12 passos que ajudam a ficar longe da compulsão” explica. Felipe também acredita que sozinho é extremamente difícil controlar essa doença.
“O índice de suicídio também tem crescido muito, está absurdo e em muitos casos a família acaba nem sabendo por que a pessoa tirou a vida”, lamenta.
Membro recente do JA, entrou em agosto, Joel*, aposentado de 54 anos, conta que a compulsão começou há cinco anos. “Comecei com Bet de futebol com R$ 20 reais. A aposta pulou para R$ 30, depois para R$ 50. A vontade de apostar vai crescendo, você passa para o caça níquel, tigrinho, aviãozinho. Quando se dá conta já se perdeu. Eu não culpo ninguém, porque a gente sabe o que é certo e errado, mas é difícil sair”, afirma.
Entre idas e vidas, ele conta que já teve duas recaídas. O maior tempo que conseguiu passar no grupo foi de 13 dias consecutivos. Em 20 de setembro teve uma recaída. Em sua trajetória ele revela que também já teve problemas com álcool, mas não bebe tem oito anos.
“Me dei conta de verdade do vício em janeiro deste ano, mas não conseguia parar e é devastador. Já tive depressão, mas não por conta do jogo e as pessoas achavam que era bobeira”, diz Joel. A busca pela cura começou quando ele resolveu desabafar com o filho e a ex-esposa, que o aconselharam a procurar ajuda.
Segundo ele o mais difícil é se sentir cercado por pessoas que também estão viciadas. “Em qualquer lugar que eu vá sempre encontro um jogador. A droga é ilegal, mas o jogo está em qualquer lugar”, acrescenta.
“É uma destruição danada. Cheguei a perder metade do pagamento e o dinheiro do almoço em jogo, a vender objetos pessoais para jogar. Peguei dinheiro emprestado com parentes e amigos, menti muito. Fiz empréstimo com agiota. Vendi carro para pagar dívida de jogo”, conta Joel, que trabalhava como porteiro e conta que os momentos mais difíceis para resistir a compulsão é quando está sozinho. “E o jogador compulsivo nunca consegue fazer uma aposta só”. Ele conta que ainda tem dívidas do jogo, está com o nome sujo, mas está se reerguendo financeiramente.
Antônio*, de 53 anos, outro membro recente do JA, afirma com convicção que as Bets não se equiparam as drogas. “O jogo online é muito pior. Você tem tudo na palma da sua mão. Conheci as plataformas através do namorado de uma prima minha. Vi ele com o celular na mão jogando e pedi para me ensinar. Fiz a primeira aposta de R$ 100, perdi. Tentei a sorte no dia seguinte, com apostas menores”, afirma, ao revelar que a vontade de jogar vai crescendo naturalmente. Na avaliação dele, o caso é muito mais grave do que a sociedade imagina que é.
“Estava perto de aposentar e aos poucos o valor das apostas foi aumentando e comecei a gastar minhas economias. Entrei no cartão de crédito, usei o limite. Cheguei a colocar crédito na plataforma de bet para jogar com o cartão da minha esposa sem ela saber. Pedi dinheiro emprestado para parentes e amigos. Quando esse círculo se esgotou e eu não conseguia pagar essas pessoas eu parti para o agiota. Me comprometi tanto financeiramente que quando fui pegar o dinheiro da minha aposentadoria tive de usar tudo para amortizar um pouco dessas dívidas. Esse foi o primeiro impacto para a minha esposa."
Ele relata que foi nesse momento que a esposa e a filha descobriram o que estava acontecendo, exigiram saber toda a verdade e ele recebeu um ultimato. "A compulsão havia se estabelecido em um prazo de seis meses, um ano de jogo. É muito rápido”, conta.
Antônio tem dívidas até hoje, que somam entre R$ 30 mil a R$ 40 mil. “Estimo ter perdido no mínimo uns R$ 200 mil em quatro anos de vício”, calcula.
“Tive de vender o imóvel que eu morava com a minha família para pagar as dívidas”, conta ao revelar como encontrou o Jogadores Anônimos. “Excluiu e bloquiei tudo, as plataformas e as propagandas. E a família é fundamental no apoio a recuperação do viciado”, explica.
Segundo ele, ter contado tudo para a minha família tirou um peso enorme dos ombros. “Você dorme melhor e sente mais confiança”, comenta, ao falar da mudança que tem sentido no último mês ao chegar ao grupo.
Gabriel Gregório, criador de conteúdo para o Clube da Aposta, diz que seu trabalho tem como propósito alertar sobre os riscos das promessas de lucro fácil dessas plataformas, mostrando que ganhar dinheiro de forma consistente é uma realidade restrita a quem entende que não se trata de algo fácil. Em vídeo educativo, 'Canal do Clubão' mostra como as apostas múltiplas, que viraram febre nas redes sociais, miram público vulnerável e aumentam o risco financeiro e psicológico.
Gregório busca esclarecer como funcionam esses games, como o famoso ‘tigrinho’, que são programados para gerar vantagem à casa, levando muitos jogadores a acreditar, de forma enganosa, que existe uma lógica capaz de torná-los lucrativos.
Em seus principais canais de comunicação, Youtube e Instagram, em média 10% do público do Clube da Aposta está inserido na faixa etária 50+ e somente 5% são mulheres.
“A grande verdade é que esta atividade não é para qualquer um. Principalmente para pessoas que já possuem histórico de vícios, compulsão e depressão”, afirma. Segundo ele, o público 50+ é um apostador que se digitalizou. “Jogo do bicho, loterias, caça níqueis, títulos de capitalização e outros sempre os tiveram como público principal. Quem nunca teve aquele tio ou avô que não passava um dia sem fazer a tal "fézinha" não é mesmo? O que pessoalmente acho curioso por ser algo tão bem aceito socialmente, diferentemente das apostas online”, acrescenta.
*Preferiram falar sob a condição do anonimato
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