Especialistas contestam alegação de Trump sobre paracetamol e autismo

Envato

Anúncio do presidente americano sobre uso de paracetamol não é apoiado por evidências científicas, destacam especialistas - Envato
Anúncio do presidente americano sobre uso de paracetamol não é apoiado por evidências científicas, destacam especialistas

Por Bianca Bibiano, com informações da Broadcast

redacao@viva.com.br
Publicado em 23/09/2025, às 15h58

São Paulo, 23/09/2025 - O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, disse ontem que o uso de paracetamol “pode estar associado” a um risco aumentado de autismo, e que por isso o Food and Drug Administration (FDA, agência americana semelhante à brasileira Anvisa) fará uma nova recomendação aos médicos do país para restringir o uso do medicamento em gestantes e crianças.

O assunto repercutiu entre autistas e especialistas brasileiros e americanos, que afirmam que, embora haja evidências já estudadas dessa relação, ela é mínima, enquanto outros fatores relacionados ao transtorno devem ser analisados. Entenda mais sobre o debate a seguir:

Leia também: Autistas adultos enfrentam dificuldades no mercado e temem retrocessos

O que Trump disse sobre o autismo

Em coletiva de imprensa na Casa Branca, Donald Trump afirmou que os americanos não devem tomar o medicamento "a não ser que tenham febre insuportável e tome apenas um". "Cuba não tem acesso a Tylenol e eles virtualmente não têm casos de autismo", disse, sem apresentar provas.

Ao mesmo tempo, a Casa Branca publicou um gráfico que mostra uma disparada nas taxas de autismo em crianças de até 8 anos nos Estados Unidos entre 2000 e 2022. Segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) apresentados pela Casa Branca, a prevalência quase quadruplicou em 22 anos, passando de 1 caso a cada 150 crianças para 1 em cada 31.

Leia também: Autistas 50+: mais de 520 mil desafiam apagamento e buscam apoio tardio

O levantamento indica que, em 2000, a taxa era de pouco mais de 6 diagnósticos por mil, enquanto em 2022 superou 32 por mil, evidenciando um aumento de quase 400% no período.

No Brasil, para termos comparativos, cerca de 2,4 milhões declararam ter recebido diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) por algum profissional de saúde, segundo dados do Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O que os especialistas comentam sobre o tema

Segundo Ivar Brandi, médico neurologista formado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com pós-graduação em neurociência e comportamento pela PUC-RS e formação em pesquisa clínica pela Harvard Medical School, a declaração não se sustenta na ciência.

"O autismo tem origens multifatoriais, predominantemente genéticas. Procurar um 'vilão' único desvia recursos da verdadeira inclusão e apoio."
[Colocar ALT]
Ivar Brandi, médico neurologista, diz que declaração de Trump não se sustenta na ciência - Divulgação

Em artigo enviado à imprensa, o especialista explica que o paracetamol permanece o analgésico mais seguro na gestação. "Organizações médicas internacionais mantêm suas recomendações: quando necessário, o benefício supera qualquer risco teórico. Dor e febre não tratados na gestação representam riscos reais". 

O assunto não é novo. Brandi cita que o maior estudo já realizado sobre o tema, com 2,5 milhões de crianças suecas, levantou essa questão anteriormente e mostrou diferença mínima de 1,42% versus 1,33% de diagnósticos de autismo entre crianças expostas ao medicamento na gestação e infância.

Leia também: Brasil calcula pela 1ª vez o número de pessoas diagnosticadas com autismo

O médico cita também estudos japoneses envolvendo comparações entre irmãos que apontaram não haver ligação entre os dois. "Famílias já enfrentam julgamentos sociais suficientes. Criar falsas associações com medicamentos seguros adiciona culpa desnecessária. Mães não 'causam' autismo. O foco deve estar no suporte, diagnóstico adequado, intervenções baseadas em evidência e inclusão de pessoas autistas", defende.

Após a fala de Trump ontem, Steven Fleischman, presidente do Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas (ACOG, na sigla em inglês), também disse que as sugestões do presidente são “irresponsáveis quando se considera a mensagem prejudicial e confusa que elas enviam às pacientes grávidas”.

“O anúncio não é apoiado por todas as evidências científicas e simplifica perigosamente as muitas e complexas causas dos desafios neurológicos em crianças”, afirmou em um comunicado. “É altamente preocupante que nossas agências federais de saúde estejam dispostas a fazer um anúncio que afetará a saúde e o bem-estar de milhões de pessoas sem o respaldo de dados confiáveis.”

Repercussão negativa entre autistas

Em nota, Arthur Ataide Ferreira Garcia, vice-presidente da organização Autistas Brasil, também repudiou a fala do presidente americano.

"Trump não está apenas equivocado quando fala que o autismo é causado pelo uso de Tylenol, não é meramente um erro, é um projeto político. Está reintroduzindo no século 21 a lógica eugenista que trata pessoas com deficiência como tragédia."

E completa, afirmando que na lógica do presidente americano, "o autismo se torna um vilão a ser combatido, e pessoas autistas são reduzidas a sujeitos desumanizados numa cruzada moral em nome de uma sociedade ‘pura’ e homogênea, sem lugar para aqueles tidos como ‘diferentes’, ‘estranhos’, ‘deficientes’".

Leia também: Onde estão e quantos são os brasileiros com deficiência, segundo Censo do IBGE

A entidade pontua que o aumento de diagnósticos de autismo observado nas últimas décadas não é epidemia nem crise de saúde pública, mas reflexo de maior acesso à avaliação e diagnóstico, especialmente entre grupos historicamente invisibilizados, como mulheres autistas e pessoas negras.

A Autistas Brasil também alerta que discursos como o de Trump já encontram ressonância no Brasil, especialmente em setores ligados ao lobby de clínicas privadas que defendem a “cura” do autismo. Para a entidade, esse movimento ameaça a construção de políticas públicas baseadas na inclusão e na emancipação.

O autismo não é doença e não precisa de cura. O que a sociedade deve buscar são políticas públicas que promovam emancipação, e isso não se dá com um discurso que patologiza a existência de pessoas autistas. Se dá com acessibilidade, educação inclusiva, cuidado humanizado e emprego apoiado”, completou Garcia.

Fabricante se defende 

Já o fabricante do Tylenol, a forma mais vendida de paracetamol nos Estados Unidos, disse que “discorda veementemente” da sugestão de que seu medicamento possa causar autismo. A Kenvue afirmou em um comunicado que “a ciência sólida mostra claramente que tomar paracetamol não causa autismo”.

Leia também: Estrutura falha e capacitismo ainda travam a vida do trabalhador PcD

A farmacêtica destacou revisões científicas de diversos órgãos reguladores em todo o mundo, incluindo aquelas publicadas anteriormente pela FDA. Além do Tylenol, o paracetamol é usado em centenas de outras fórmulas de venda livre para resfriado e gripe.

Nesse sentido, a Society for Maternal-Fetal Medicine (Sociedade de Medicina Materno-Fetal americana)  disse que o Tylenol (paracetamol) é “um medicamento apropriado para tratar dor e febre durante a gravidez”. O grupo de especialistas afirma que a febre não tratada durante a gravidez traz riscos significativos para as mães e os bebês, como aborto espontâneo e defeitos congênitos. 

Palavras-chave EUA autismo paracetamol Tylenol

Comentários

Política de comentários

Este espaço visa ampliar o debate sobre o assunto abordado na notícia, democrática e respeitosamente. Não são aceitos comentários anônimos nem que firam leis e princípios éticos e morais ou que promovam atividades ilícitas ou criminosas. Assim, comentários caluniosos, difamatórios, preconceituosos, ofensivos, agressivos, que usam palavras de baixo calão, incitam a violência, exprimam discurso de ódio ou contenham links são sumariamente deletados.

Últimas Notícias