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Envelhecer longe de casa: os desafios de quem chega ao Brasil depois dos 50

Acervo pessoal

A venezuelana Rosmeri Henriquez, 59, relembra a dificuldade com a barreira do idioma ao chegar ao Brasil - Acervo pessoal
A venezuelana Rosmeri Henriquez, 59, relembra a dificuldade com a barreira do idioma ao chegar ao Brasil

Por Carla Nigro, especial para o VIVA

redacao@viva.com.br
Publicado em 22/11/2025, às 15h58

São Paulo, 22/11/2025 - Pedir uma sacola no supermercado é um gesto tão automático que passa despercebido para a maioria das pessoas. Mas não para a chefe de cozinha venezuelana Rosmeri Henriquez, 59. Esse é um ato que a recorda os desafios que enfrentou ao chegar ao Brasil, quatro anos atrás. Sem falar português, tentou explicar o que queria, foi mal compreendida e acabou expulsa do supermercado, chorando pela frustração de não se fazer entender. “Não é fácil uma pessoa de idade vir tentar a vida aqui”, diz.

Mais de 700 mil estrangeiros acima dos 50 anos vivem no Brasil, segundo o Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE). Além dos estrangeiros, outros 200 mil naturalizados brasileiros estão nessa faixa etária.

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Em outubro, foi publicada a primeira Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia do Brasil. Um avanço aguardado desde 2017, quando a Lei de Migração foi sancionada. Apesar de o texto criar bases para o futuro, é insuficiente para a realidade hoje, na opinião de Daniel Toledo, fundador da Toledo e Associados, um escritório especializado em direito internacional e imigração, com sede no Brasil e nos Estados Unidos.

A nova política estabelece princípios -  como inclusão produtiva, reconhecimento de habilidades e acesso à saúde - mas ainda depende de regulamentação, orçamento e coordenação entre diferentes entes públicos, destaca o advogado.

“O Brasil ainda está longe de ter uma política migratória adequada para receber imigrantes acima de 50 anos”, afirma.

Ele reconhece que existem estruturas gerais, mas cobra a coleta de dados segmentados e a criação de programas específicos de acolhimento, empregabilidade e acompanhamento de saúde para imigrantes mais velhos. “Falta planejamento, e isso se reflete na forma como as pessoas se integram ou não ao País”. 

Ao mesmo tempo, o Brasil envelhece rápido. A população com 60 anos ou mais passou de 6% em 1980 para 15,1% no Censo 2022 — mais de 32 milhões de pessoas. Envelhecer com qualidade é igualmente desafiador para os imigrantes que chegam ao País após os 50, junto com outros obstáculos como a barreira do idioma e a busca de oportunidades de trabalho para recomeçar.

“Os motivos mais comuns para a migração tardia são a busca por refúgio, reunião familiar e a tentativa de ter uma velhice financeiramente mais viável do que em seus países de origem”, afirma Toledo. 

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Começar de novo

A história de Rosmeri tem todos esses componentes.  Ela cruzou a fronteira da Venezuela para o Brasil em 2020, aos 55 anos, na chuva, carregando apenas uma mochila. Deixou as malas, amigos, uma filha e a mãe enferma para trás. “A situação na Venezuela era muito difícil. Ainda é, mas naquele período era pior, porque não havia produtos básicos e eram muito encarecidos.”

Chegou a Brasília para cuidar das netas, depois que a filha mais velha adoeceu de Covid-19. No começo, mesmo com a família por perto, diz que se sentiu sozinha e deprimida. “Não é fácil porque você tem que deixar amizades, família, casa, todas as suas coisas e recomeçar”.

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A barreira linguística foi o maior obstáculo. Para superá-la, entrou para o programa “Língua Portuguesa para Migrantes e Refugiados” e do Centro de Convivência do Idoso (CCI), ambos da Universidade Católica de Brasília. Ali fez amigas, se sentiu acolhida e aprendeu novas habilidades. 

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Hoje, aos 59 anos, Rosmeri vive com a filha, o genro e os netos. Diz que se estabeleceu, tem uma rotina, um grupo de amigas e é chefe de cozinha. Produz seu próprio saquê artesanal — com o qual ficou em segundo lugar em um concurso. “Meus planos para o futuro são ter minha independência e negócio”, diz.

Mas, apesar de se declarar muito contente, isso não significa que os desafios tenham desaparecido. Um deles é o acesso à saúde. Rosmeri diz esperar há um ano por um exame. “É muito burocrático e enrolado”, resume.

Imigrante no SUS

Para Vicente Paulo Alves, pesquisador do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e doutorado) em Gerontologia da Universidade Católica de Brasília, envelhecer no Brasil envolve três pilares: saúde, renda e vínculo social. “No caso de quem imigra depois dos 50, esses fatores ficam ainda mais delicados”, afirma. 

Ele destaca que a barreira do idioma interfere tanto no acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) quanto na vida diária, como pedir ajuda e fazer amigos. Também pesa a falta de preparo das equipes de saúde para lidar com especificidades culturais e documentais. “Em teoria, o SUS garante atendimento a qualquer pessoa no território nacional”, destaca, “mas, na prática, o acesso pode ser desigual”.

Além disso, ele observa que o lado social também influencia o bem-estar dos idosos. Grupos de convivência, centros comunitários e associações culturais, ou seja, redes de apoio são fundamentais para reduzir a solidão e fortalecer o sentimento de pertencimento, segundo Alves. 

Para imigrantes, o vínculo comunitário é ainda mais importante”, afirma, “Projetos de acolhimento, atividades culturais e parcerias entre prefeituras, universidades e ONGs têm mostrado bons resultados”.

Trabalhar e estudar fora

Migrar pode significar ampliação da visão de mundo, novas oportunidades e recomeços. Isso foi o que aconteceu com o boliviano Moisés Guzman, 65. O Brasil se tornou sua chance de ter um emprego digno e ajudar outras pessoas, e hoje ele comemora estar na universidade. “Entrei na universidade este ano, estou fazendo Direito. A idade não interessa”.

Aos 47 anos, o contador deixou a Bolívia e foi para a Argentina. Viveu por sete anos no país fazendo contabilidade para imigrantes bolivianos, mas, diante da hiperinflação, buscou outra fronteira para viver, desta vez o Brasil. Era 2014.

“Não, não. Já é um idoso. Traga seus filhos, eles vão trabalhar conosco", recorda Guzman, sobre o que imigrantes bolivianos lhe diziam quando ia procurar emprego recém-chegado ao Brasil  "Nenhum deles perguntou se eu sabia fazer algo com o computador. Eles me subestimavam".

Sua primeira oportunidade veio como ajudante de cozinha. Lavava verduras, carregava sacos pesados, de 40 ou 50 quilos, até o segundo andar do restaurante, o que lhe dava dor nas costas.

Mas tudo mudou quando um brasileiro viu seu currículo e o aceitou no Centro Integrado de Imigrantes, onde começou a trabalhar em 2015 com documentação migratória. Hoje, o boliviano atua como despachante de imigrantes. Ele conta que 99% por cento de seus clientes são bolivianos. “Tenho um trabalho digno. Eu me sinto útil”, diz Guzman, que se diz grato e feliz pelo acolhimento. Seu objetivo é seguir no caminho que abriu: continuar ajudando estrangeiros a viver no País, sem hora para se aposentar.

Acordos para aposentadoria

Trabalhos informais e precarizados são o destino de muitos imigrantes mais velhos que vem ao Brasil. Segundo o advogado Daniel Toledo, o preconceito etário é um dos motivos pelos quais são empurrados a essa realidade.  

Além disso, ressalta que a aposentadoria depende de acordos internacionais. Sem um acordo previdenciário entre os países, como é o caso da Venezuela, o imigrante tem que recomeçar do zero e cumprir os prazos mínimos exigidos. “Algo que, nessa faixa etária, muitas vezes é impraticável”.

“Acabam em funções precarizadas, recebendo pouco, sem proteção trabalhista e, principalmente, sem contribuições regulares para a aposentadoria. Isso gera risco significativos para a renda futura, saúde, autonomia e dignidade na velhice”, afirma. 

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O especialista em direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Gustavo Monaco acrescenta que para refugiados e apátridas (pessoas que não tem nacionalidade reconhecida em nenhum país), um dos desafios é a documentação. Outro é a revalidação do diploma. 

“Refugiados e apátridas têm essa dificuldade porque vem em razão de perseguição e não trazem documentação. Além disso, não existe um banco global de informações a respeito da formação profissional ou profissionalizante”. 

Ele acrescenta que também não tem conhecimento  de políticas específicas para imigrantes maiores de 50 anos no Brasil. Mas destaca que a política estabelecida pelo governo federal é condizente com as normas internacionais, fornecendo condições para imigrantes de absorção na sociedade brasileira. Além disso, acredita ser possível chegar nessa faixa etária e recomeçar a vida aqui. 

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