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Violência patrimonial: quando pedir dinheiro a uma pessoa idosa vira crime

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De acordo com a legislação, os 60+ possuem autonomia sobre o seu dinheiro e podem escolher onde e para quem destiná-lo - Envato
De acordo com a legislação, os 60+ possuem autonomia sobre o seu dinheiro e podem escolher onde e para quem destiná-lo
Por Paula Bulka Durães

15/12/2025 | 08h16

São Paulo, 15/12/2025 - Se um filho ou neto pede ao pai, mãe ou avô dinheiro para comprar um tênis para ir trabalhar, existe alguma má intenção? E se, no mês seguinte, ele precisar de R$ 1 mil para quitar uma dívida? Ou ainda, três meses depois, ele solicitar que esse familiar peça ao banco um empréstimo consignado para abrir um negócio?

E quando, ao conferir a fatura do cartão de crédito, esse mesmo pai ou avô encontra várias compras feitas por aquele parente querido, nenhuma delas autorizada ou comunicada previamente? Foi isso que Jaqueline*, 50, presenciou ao verificar o extrato do cartão de sua mãe, quando suspeitou que seu irmão mais novo estava fazendo compras sem permissão.

“Ele se apropriou, durante meses, do cartão de crédito da minha mãe para pagar a mensalidade da academia, suplementos alimentares, gastos na padaria. Não bastasse isso, cadastrou a conta do banco no celular dela e fez compras na Shopee e em outros sites da internet. Ela não sabe mexer nesses aplicativos, não tinha noção de nada.”

A desconfiança surgiu depois que o pai de Jaqueline, também idoso, notou compras estranhas no extrato da conta bancária. Algumas semanas antes, ele havia passado a senha para o filho comprar alguns medicamentos na farmácia. Desconfiado, pediu a Jaqueline que convencesse sua esposa, de 80 anos, a conferir a fatura do cartão.

“Depois de muita conversa, consegui convencer minha mãe a ir comigo à agência do banco, e ali o gerente viu que, além dos gastos que ultrapassaram R$ 5 mil, meu irmão parcelou a fatura, mas não fez nenhum pagamento.”

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O caçula também utilizou o limite de crédito aprovado no caixa eletrônico para fazer empréstimos de valores menores, um deles chegando a R$ 126. “Tudo o que ela me pediu foi para que resolvesse a situação sem brigas e, por respeito à vontade dela, não fiz a denúncia”, desabafa.

Mas qual é o limite do aceitável, que diferencia o pedido de ajuda a uma pessoa idosa de um estelionato ou uma coação? De acordo com a legislação brasileira, a pessoa com mais de 60 anos de idade possui autonomia sobre o seu dinheiro e pode escolher, como bem entender, onde e para quem destiná-lo.

O problema surge quando esses empréstimos, recorrentes ou não, são realizados sem autorização, por meio de apropriação de bens, chantagem ou manipulação – nesses casos, o filho ou neto torna-se um agressor que pratica a chamada violência patrimonial.

Pessoa idosa não é incapaz

A advogada Danielle Biazi, doutora em direito civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e sócia do escritório Biazi Advogados Associados, afirma que a pessoa idosa possui um estado de vulnerabilidade, mas essa vulnerabilidade não é sinônimo de incapacidade.

“As pessoas com mais de 60 anos são protegidas no Brasil por uma legislação própria, o Estatuto da Pessoa Idosa, mas a vulnerabilidade a qual elas podem estar expostas não deve ser confundida com incapacidade. Na lei, somente menores de 16 anos são consideradas incapazes absolutos”, esclarece.

A exceção, segundo a advogada, são as pessoas idosas que necessitam de curatela, quando não estão em plena capacidade de administrar o patrimônio, como no caso daquelas diagnosticadas com doenças degenerativas em estado avançado, como Alzheimer e demência.

“Mesmo nessas situações, o indivíduo é considerado relativamente incapaz, uma mudança que começou com a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em 2015”, explica. Entretanto, mesmo considerada capaz perante a legislação brasileira, a pessoa idosa que for vítima de coação ou indução pode ter o empréstimo ou débito contestado, de acordo com a advogada.

Emprestar dinheiro dos 60+ para terceiros é crime?

O Estatuto da Pessoa Idosa, aliado ao Código Civil e Penal brasileiro, prevê punições contra quem pratica violência contra o patrimônio dos mais velhos.

No entanto, essa proteção não deve ser confundida com uma diminuição da autonomia, já que a legislação garante a liberdade sobre o próprio dinheiro e a dignidade como direitos fundamentais das pessoas com mais de 60 anos.

O que o Estatuto define como crime no País são ações que ferem a integridade financeira dos mais velhos. Confira os principais casos:

O advogado criminalista Rafael Paiva, professor de direito penal e processo penal, explica que, havendo denúncias ou suspeitas, a polícia e o Ministério Público devem investigar casos de violência independentemente da vontade da vítima de prosseguir com a denúncia.

“A grande questão é que, muitas vezes, a própria pessoa idosa vai querer proteger o filho e não concordará com a denúncia. Nesses casos, a saída é alguém próximo fazer uma denúncia, como um irmão, neto ou vizinho.”

Com a denúncia realizada, o aparato do Estado irá verificar se aquela situação de empréstimo financeiro faz parte de uma violência ou não, segundo o advogado.

“É preciso analisar o contexto. Se uma pessoa idosa ativa, que trabalha e tem uma vida social entende que aquilo não foi uma extorsão ou estelionato, essa opinião será levada em consideração. Contudo, se for comprovado que há uma tentativa de tirar vantagem de um idoso, com o agravante desse idoso estar em situação de vulnerabilidade, então, o Código Penal deverá ser cumprido.”

Falta de agilidade dificulta o processo

Na esfera civil, as instituições financeiras que registram a cobrança em nome da pessoa idosa às vezes exigem uma decisão da Justiça para anular a cobrança ou empréstimo realizado em seu nome, detalha a advogada Vanessa Paiva, especialista em direito de família e sucessões.

Os bancos trabalham da seguinte forma: se tem o cartão e a senha, não é algo ilícito; eles presumem que a pessoa forneceu. Nesses casos, solicitamos uma tutela de urgência para que o juiz, sem sequer ouvir a instituição financeira, promova o cancelamento ou a inexigibilidade das parcelas desse empréstimo consignado ou de outra transação.”

Paiva esclarece que a morosidade da Justiça pode dificultar a reparação para a vítima. “O dano moral é subjetivo, e muitas vezes o crime acaba compensando”, lamenta.

De acordo com dados do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, o Disque 100 registrou, até 12 de dezmbro deste ano, 611,4 mil denúncias, somando todas as tipificações de violência – física, psicológica, patrimonial, entre outras –, sendo que 27,1% delas foram contra pessoas idosas. A faixa etária mais atingida pela conduta violenta foram pessoas de 70 a 74 anos. As mulheres foram 65,5% das vítimas idosas de violência.

Autonomia e liberdade

A professora aposentada Catarina Freitas, 65, moradora da comunidade de Heliópolis, na Grande São Paulo, reforça que a grande dificuldade de denunciar um familiar é justamente entender os limites entre o pedido de ajuda e o abuso. “É difícil dizer não a alguém que você ama. Se minha filha chega e me pede um tênis novo para trabalhar, é lógico que não vou negar, mas a linha é tênue”, expõe.

Catarina é uma das pessoas idosas atendidas pelo Instituto Velho Amigo, que promove ações e atividades formativas que retomam a dignidade da população mais velha em situação de vulnerabilidade social. Foi dentro da instituição que ela tomou consciência dos diferentes tipos de violência a que as pessoas idosas estão expostas.

“O principal papel do instituto hoje é que essa pessoa idosa seja protagonista, promovendo trocas e formações que auxiliem na emancipação, para que ela recupere a dignidade e tenha acesso ao envelhecimento saudável”, detalha a responsável pelo núcleo de convivência do Instituto Velho Amigo, Amanda Borges.

Como denunciar violência contra pessoas idosas?

Qualquer pessoa que observe uma pessoa idosa sendo coagida ou sofrendo violência, independentemente da natureza, pode encaminhar uma denúncia por qualquer um dos canais abaixo:

  • Disque 180 ou Disque 100;
  • Registrando um boletim de ocorrência nas delegacias comuns ou delegacias especializadas em crimes cometidos contra a população idosa;
  • Acionando o Ministério Público e a Defensoria Pública do seu Estado.

*O nome foi alterado para preservar a identidade da fonte.

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